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Nos 50 anos do 25 de Abril de 1974, quisemos marcar a data com alguns testemunhos que ilustrassem o ‘antes e depois’ desse marco da Democracia nacional, especificamente, no caso da Justiça, da Advocacia e do exercício das profissões jurídicas.

Assim, convidámos Artur Cordeiro, Juiz Presidente da Comarca de Lisboa, e José António Barreiros, iminente Advogado de longa data, a partilharem connosco as suas memórias e experiências sobre esse tempo que nos trouxe aos dias de hoje. Aqui ficam as suas histórias e reflexões.


Justiça, Antes e Depois do 25 de Abril, por Artur Cordeiro

Apesar de já existir neste mundo, mas ainda nos primeiros anos de vida, não tenho memória do ambiente político, social e cultural que caracterizava Portugal no período anterior ao 25 de Abril de 1974. Porém, como todos nós, aprendi nas lições de história que recebi na escola e nos testemunhos em discurso direto de todos aqueles que viveram aquele período já em idade ciente que se tratava de um ambiente marcado pelo conservadorismo, autoritarismo e pela limitação de fundamentais liberdades individuais e coletivas, que se estendeu por um período de 48 anos com advento na Revolução Nacional do 28 de maio de 1926.

Aprendi igualmente que a Justiça não estava ao nível das demais funções soberanas do Estado e não era delas independente, sendo antes um instrumento útil à perpetuação do sistema instalado, em todas as suas vertentes (política, pública e privada), nele se surpreendendo a existência de tribunais especiais para julgamento de crimes políticos, um sistema de seleção e progressão de Magistrados formalmente a cargo de um Conselho Superior Judiciário nomeado pelo Ministro da Justiça e uma Ordem dos Advogados (associação pública independente dos órgãos do Estado, criada 1926) com os seus membros inevitavelmente amarrados à legislação e orgânica judiciária existentes, todos sempre sob a tutela de um Estado extremamente vigilante e “policialmente” atuante contra tudo o que extravasasse o admissível pela ordem existente.

Com o 25 de abril de 1974 e todo o conturbado período (de liberdade) que se lhe seguiu foi criado um novo sistema político, que tem a sua génese numa nova carta constitucional, onde se afirmaram, de modo perentório, os direitos, liberdades e garantias individuais e coletivas essenciais à convivência numa sociedade livre e democrática. Esta fundação constitucional (que, na sua essência, se mantém até hoje) permitiu não só a instituição e consolidação de um verdadeiro Estado de Direito (com a formal e tradicional separação de poderes) mas também a abertura de Portugal ao mundo.

Volvidos 50 anos, poderemos afirmar orgulhosos (e também escorados nas instituições internacionais em que nos inserimos) que se mantém, no seu âmago essencial, a separação de poderes essencial à prevalência do Estado de Direito: a Justiça tem, orgânica e legislativamente, a liberdade necessária para exercer a sua função soberana. Menos exuberante será o júbilo quando o olhar se foca no que efetivamente a Justiça é capaz (ainda que em limite estoico) de fazer com os meios que possui.

A conclusão, lamentavelmente, é que faz menos do que seria capaz e do que lhe é demandado pelo cidadão. Pior, é já evidente que a prosseguir-se o caminho que vem sendo percorrido, não tardará a inelutável constatação de que a Justiça se encontra mais uma vez subalternizada aos demais poderes do Estado (tal qual como no Estado Novo).

Conceda-se materialmente à Justiça a constitucional separação e independência, com a responsabilidade de gerir autonomamente os meios de que necessita (materiais e humanos) e com o com o correspetivo dever de prestar contas da sua atuação (designadamente ao nível da resposta que lhe é exigida em tempo razoável, especialmente na apreciação de processos especialmente complexos em que avultam aqueles onde se afere da responsabilidade judicial de titulares de cargos públicos), é o que preconizamos. E esta vital necessidade não abarca apenas as Magistraturas, mas também os Advogados que necessitam de maior segurança no desempenho da sua função essencial (começando por uma definição concreta e robusta dos atos que só a eles podem ser confiados e pela concessão dos direitos sociais de que são inquestionavelmente credores).

Por outro lado, a abertura de Portugal ao mundo global trouxe e traz desafios permanentes. A complexidade técnica introduzida em antigos institutos jurídicos e aquela que resulta das novas realidades próprias do tempo em que vivemos demandam conhecimentos jurídicos específicos, diversos daqueles de que são normalmente dotados os Magistrados ou Advogados. Por isso, para a efetiva realização da Justiça no tempo razoável e em todas as suas áreas, é absolutamente essencial a criação de mecanismos que os habilitem para o efeito (desejavelmente, de modo articulado e em participação conjunta, nas escolas de Direito e nas escolas profissionais).

Muito se fez por quem nos antecedeu. Muito há e haverá ainda a fazer se queremos o aperfeiçoamento, e a efetiva consolidação, do Estado de Direito que temos.

 

25 de Abril – A Advocacia e a Liberdade, por José António Barreiros

Do ponto de vista dos conceitos a advocacia pressupõe liberdade. Historicamente foi exclusivamente uma profissão liberal. E, no entanto, já teve de conviver com regimes autoritários, em que a própria defesa processual era severamente limitada, em que os advogados foram vítimas da repressão, mesmo no exercício da profissão. Escrevo isto e penso que temos todos em mente aquele 25 de Abril que ora se comemora, o da restituição da liberdade. Valerá porventura a pena alargar os horizontes.

Não me é fácil escrever sobre o 25 de Abril, os sentimentos confundem-se. Neste momento em que se comemora o 50º aniversário, o tom geral é de glorificação, de realce dos aspectos positivos, em contraponto com o estado do País no dia transacto e, partindo daqui, extrapola-se generalizadamente para o que foi o regime político autoritário que nos governou até então.

Pensando nisso, não posso deixar de notar que há alguma linearidade nessa perspectiva. Primeiro, porque não é possível desconsiderar uma perspectiva história e uniformizar, como se de uma só e monolítica realidade se tratasse, o que sucedeu em Portugal desde o 28 de Maio de 1926 até ao 25 de Abril de 1974, passando pelo dito Estado Novo, entronizado por António de Oliveira Salazar em 1933, com a Constituição, com o que ocorreu derrotadas as tropas do Eixo nazi-fascista em 1945, o que resultou ante o início da guerra em África e culminando com a proclamada “evolução na continuidade” que Marcelo Caetano tentou protagonizar.

Depois, porque o que ocorreu após o 25 de Abril não foi linear, logo porque no dia 1º de Maio o que era um pronunciamento militar se transformou numa revolução popular, depois porque em 1975 o país, ante o radicalismo do “processo revolucionário em curso”, o PREC, esteve à beira de uma guerra civil.

Só uma total desconsideração da História, hoje abandonada nos curricula escolares e na consciência popular, permite que perdure o efémero, o imediato, a aparência mais espectacular e estas situações diversificadas não sejam vistas com a especificidade que se exige. Em todos esses contextos, advogados houve que tiveram de lutar pela liberdade de defesa dos seus constituintes, ainda que fosse aqueles outros que foram sucessivamente detidos, condenados e presos, por vezes amnistiados. Assim já na transição da Monarquia para a República, ainda durante esta.

Há toda uma História por fazer em que a sucessão de regimes é feita à conta de perseguições e agraciamentos, algumas servidas por uma justiça militar, adestrada à rápida e obediente condenação, outras, como com o dito Estado Novo, a partir de 1945 com o comprometido da justiça criminal comum, através dos denominados tribunais plenários.

Não foi só na polícia e no foro que se travou, porém, o combate pela liberdade. Quantas vezes, no terreno ele teve de enfrentar a mão armada da justiça revolucionária, a auto-legitimada justiça popular. Antes disso, muito antes, foi o combate no plano legislativo, contra leis liberticidas, nomeadamente no campo jurídico criminal, mas também de cerceamento da liberdade de imprensa, da criação de situações aptas à impunidade, como a caduca garantia administrativa.

Revendo as conclusões do 1º Congresso Nacional da Advocacia, ocorrido em Novembro 1972, aquilata-se bem o que era a situação, num período em que Marcello Caetano, ao ter sucedido a António de Oliveira Salazar, ensaiava uma impossível sobrevivência do regime. Nesse ano, na então denominada Assembleia Nacional, Francisco Sá Carneiro, tentava, em vão, fazer passar legislação que garantisse a judicialização da averiguação criminal pré-acusatória, até aí confiada a um Ministério Público legalmente dependente do Ministério da Justiça.

Tive a grata oportunidade de, em 1971, ter sido formado, enquanto “candidato à advocacia”, assim se nos chamavam então, por Francisco Salgado Zenha, militante activo, várias vezes preso, com obra jurídica apreendida. Viria a ser o primeiro dos ministros da Justiça após o 25 de Abril e eu de o acompanhar enquanto seu secretário e Adjunto, o País então a tentar refazer-se.

Tempos difíceis esses, em que a liberdade estava em causa, em breve exigiriam, pouco mais de um ano depois, o ambiente insurrecional, o País à beira de uma guerra civil, o contra-ciclo de legislação de emergência, a impunidade de vias de facto, muitas por mão militar.

Foram tempos que a advocacia teve um dos momentos mais difíceis, a própria sobrevivência da Ordem esteve em causa. Devemos nesses tempos, aos Bastonários Ângelo de Almeida Ribeiro e Mário Raposo, este sobretudo num tempo em que sindicalismo revolucionário queria destruir a própria noção de Ordem, a nossa sobrevivência como classe.

Aprendi que a vida é mais complexa do que a visão unidimensional com que muitos se contentam e em nome da qual vivem opções maniqueístas entre os necessariamente maus e os inevitavelmente excelentes, tornando a História hagiografia de uns e demonologia de outros. Mas como escreveu “José Régio”, há mais mundos.