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Passam 50 anos sobre a Revolução dos Cravos e muito mudou na vida em sociedade. A Liberdade de Expressão é, talvez, a mudança mais palpável porque interfere com o nosso quotidiano e com vivências tão simples como conversar com um grupo de vizinhos ou comprar um livro para os tempos livres – ambas situações que eram perigosas em tempos de ditadura.

Felizmente, esta é uma realidade afastada da vida diária das gerações nascidas depois de 1974, que já cresceram em liberdade e sem restrições como usar isqueiro ou biquíni, dar beijos em público ou andar de bicicleta sem licença (ver caixa “SABER MAIS:O que era proibido antes do 25 de Abril de 1974”). Mas, por outro lado, o esquecimento a que a passagem do tempo submete estes factos leva a que a nossa interpretação da atualidade se faça sem referências que nos permitam valorizar o regime democrático em que vivemos.

Apesar dos seus defeitos, a Democracia e a Liberdade de que atualmente usufruímos é bastante diferente desses tempos sombrios em que a censura acossava os media e os editores e livreiros vendiam os seus livros (incluindo muitos que nada tinham que ver com política) ‘às escondidas’.

Para ajudar a reter a memória histórica da Liberdade de Expressão desses tempos, recuperamos aqui algumas ideias e factos, numa lógica comparativa de ‘antes e depois’, a que se acrescenta uma sempre necessária análise critica e construtiva sobre a realidade atual. Será que passados 50 anos, a Liberdade de Expressão está para ficar?

 

Liberdade de Expressão antes do 25 de Abril

Notícia ‘cortada’ pela CensuraFonte: Portugal d’Antigamente

Notícia ‘cortada’ pela Censura
| Fonte: Portugal d’Antigamente

A instauração do Estado Novo em Portugal (1933) caraterizou-se pela ação de um forte aparelho repressivo. A censura foi um dos mecanismos de controlo da vida política dos cidadãos e impediu a liberdade de imprensa, de expressão e de opinião. Essa liberdade englobava várias ações que não eram possíveis antes da Revolução de 1974:

  • Para começar, a Liberdade de expressão oral, o falar livremente entre pessoas, incluindo família, amigos, vizinhos – qualquer pessoa podia ser denunciada por professar uma opinião que fosse contra o regime político;
  • A Liberdade de reunião e de associação também era proibida: a polícia política tinha milhares de informadores em todo o lado para escutar conversas e informar sobre comportamentos. Não eram permitidos grupos grandes a falar na rua;
  • Por esta razão, a Liberdade de expressão política não existia: os partidos políticos eram proibidos, salvo o partido do regime, e viviam na clandestinidade, sob risco de vida dos seus militantes, se e quando fossem identificados ou descobertos;
  • A Liberdade de expressão informativa era completamente controlada: os media da altura eram censurados, quer dizer, nenhuma notícia era publicada sem ser revista por um censor que decidia se a informação era prejudicial ao regime político; se fosse, não era publicada;
  • A Liberdade de expressão editorial também era coartada: os livros que eram publicados em Portugal eram rigorosamente verificados e muitas vezes proibidos ou pelo menos ‘amputados’ das partes que eram consideradas prejudiciais e, por outro lado, era proibido importar, vender ou ser proprietário de determinados livros de autores estrangeiros ou editados no estrangeiro por autores portugueses, pelas mesmas razões;
  • A Liberdade de expressão educativa também estava em causa: nas escolas, o que se ensinava também era completamente controlado e formatado àquele que era o enquadramento de sociedade que o regime queria. Os professores não eram livres de ensinar as matérias tais como elas eram na realidade;
  • A Liberdade de expressão artística foi outro alvo da censura: todas as formas de arte e espetáculo eram também controladas e censuradas, condicionando a atividade criativa de artistas e intelectuais e levando à supressão parcial ou total de muitas das suas obras;
  • A acrescer a isto, havia ainda o risco de a correspondência e contactos telefónicos serem verificados.
Cartaz da Exposição sobre a CensuraFonte: Museu do Aljube

Cartaz da Exposição sobre a Censura | Fonte: Museu do Aljube

Para as gerações de hoje, isto pode parecer uma série de televisão passada numa qualquer realidade distópica, mas isto não é ficção – aconteceu mesmo assim e pessoas foram presas, torturadas e algumas morreram por isso. Quem ultrapassasse estas proibições de expressão, podia ser detido, questionado e torturado – não interessava que estivesse a dizer a verdade. A verdade era aquela que o regime político impunha.

Já agora, do ponto de vista da Advocacia, os Advogados eram talvez quem conseguia ter mais liberdade de expressão, devido ao caráter independente da profissão, mas mesmo assim tinham de operar com cautelas porque também poderiam ser ameaçados. Muitos, na defesa dos seus clientes e de causas justas, sofreram represálias, por representarem, na visão do regime, uma ameaça – por exemplo, ao defenderem presos políticos.

É preciso que se diga, já agora, que a Justiça também não era livre, a Justiça como a conhecemos hoje, não existia. Havia muitos processos em que os indivíduos nem eram presentes a um juiz, quanto mais terem acesso a um Advogado, a uma defesa e a um julgamento. (ver “A prática da Advocacia, em Ditadura e em Liberdade”).

 

Liberdade de Expressão depois do 25 de Abril

As limitações e proibições do direito à Liberdade de Expressão, que duraram os 48 anos de ditadura, terminaram com a Revolução. A Constituição da República Portuguesa consagrou, logo em 1976, separadamente, o direito de expressão e o direito à informação. Isto porque o seu alcance não é o mesmo: o primeiro assenta em opiniões ou juízos de valor e o segundo versa sobre factos.

Em particular o artigo 37.º define que: “Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações”.

Numa lógica de vida em sociedade, estas duas liberdades devem ser vistas como um enriquecimento moral e democrático, sendo absolutamente centrais para que a opinião pública possa escrutinar a atividade pública e política, pugnando pela afirmação do interesse público e não permitindo um enfraquecimento da Democracia.

A oralidade voltou a ser possível, a imprensa, os livros, a arte e cultura em geral, voltaram a ser livres, a educação também, incluindo a aprendizagem sobre o período da ditadura em que a Liberdade de Expressão foi suprimida.

Por outro lado, a abertura do país ao progresso económico e social tornou possível a chegada de novas formas de comunicação que ampliaram a capacidade de expressão e que ajudaram na manutenção da Democracia.

Há vários marcos nessa evolução, como por exemplo no setor dos media, área onde a mudança foi maior:

  • Nos anos 1980, vivemos a proliferação das rádios piratas;
  • É dessa vaga que nasce a TSF – a primeira rádio em Portugal exclusivamente dedicada a notícias – e que começa a emitir em 1984 e, de forma legalizada, a partir de 1989;
  • Na imprensa escrita, também há novas abordagens ao jornalismo: em 1988 nasce o Independente, em 1990 o Público, por exemplo;
  • No início dos anos 1990, chegam as televisões privadas, com a SIC em 1992 e a TVI em 1993 (apenas 4 meses mais tarde);
  • No final dos anos 1990, temos a explosão da internet, com medias criados de raiz para serem online, como a Agência Financeira e o Canal de Negócios (que depois deu origem à sua versão em papel – o Jornal de Negócios, já no início dos anos 2000);
  • É da mesma altura o movimento dos media tradicionais para o online, datando desse momento as primeiras páginas online dos jornais já existentes em papel, bem como das rádios e televisões.

No início dos anos 2000, a expansão da internet faz surgir outras formas de participação pública e do público:

  • Logo no princípio do novo milénio, surgem os blogs e o chamado ‘jornalismo do cidadão’, alimentado pela facilidade da tecnologia dos telefones móveis que permitem, primeiro, fotografar, depois filmar, e das plataformas na internet que permitem publicar e partilhar;
  • A partir de meados dos anos 2000, começam a surgir as redes sociais, como o Facebook, que foram progressivamente ocupando um espaço e funções mais transversais e complexas bem como promovendo uma aparente democratização da liberdade de expressão.

Hoje, com tantos suportes, plataformas, ferramentas e meios de divulgação ao alcance do cidadão comum, qualquer um de nós pode expressar-se de forma livre. Ou seja, passámos de um extremo para o outro, para uma Liberdade de Expressão aparentemente igualitária devido às redes sociais, mas que nos trouxe também novos problemas e desafios.

Notícias do Jornal de Notícias censuradasFonte – Jornal de Notícias

Notícias do Jornal de Notícias censuradas
| Fonte – Jornal de Notícias

Liberdade de Expressão e Novos Desafios

Sendo verdade que a Liberdade de Expressão atual nos dá o direito de informar e de ser informados sem que haja proibição ou censura, esse direito também traz deveres como o da responsabilidade e do respeito pelo outro – como o de devermos ter sempre em conta a verdade daquilo que dizemos.

O que vemos hoje é que a Liberdade de Expressão e, sobretudo, os meios tecnológicos que a sustentam, estão a permitir a proliferação de mentiras e das chamadas ‘fake news’ (notícias falsas) – que não são propriamente uma invenção moderna, mas que ganham uma dimensão e um impacto enormes com a tecnologia disponível.

E, quando falamos de ‘fake news’ há que ter em conta não apenas as que possam ser divulgadas por instituições formais e depois replicadas pelos media – ainda que isso seja raro, porque o jornalismo funciona com mecanismos de verificação de factos. Também é preciso estar atento às histórias que as pessoas comuns por vezes inventam e depois partilham (antes eram conhecidas por ‘rumores’), numa espécie de ‘vale tudo’ que pode, no limite, pôr em causa a própria Democracia que as permite.

Depois há ainda o problema dos media e da sustentabilidade do jornalismo atual, atividade que atravessa um dos momentos mais delicados da sua história, ligado quer à precariedade associada à profissão de jornalista quer ao movimento de digitalização.

Esta tem tido um efeito disruptivo quer na prática jornalística, quer nos modelos de negócio do setor, mas a sobrevivência do jornalismo é fundamental em Democracia, uma vez que é preciso que haja informação credível para que os cidadãos possam escrutinar a atividade pública e política. Nesse sentido, a atividade do jornalismo plural e livre é (e será sempre) essencial para o exercício da Democracia.

Por outro lado, vivemos nos últimos anos vários movimentos, chamados de ‘politicamente correto’ ou de ‘wokismo’, muitas vezes a coberto da pretensa defesa dos direitos de minorias e da promoção de uma igualdade entre todos, que vêm interferindo na Liberdade de Expressão.

Estes movimentos – que são de todos os quadrantes políticos, constituindo uma ‘arma de arremesso’ usada sobretudo pelas forças extremas, quer de direita quer de esquerda – têm afetado muito mais do que a oralidade e o jornalismo, estando a fazer uma enorme pressão sobre a cultura. São exemplos disso a supressão de livros ou a censura/alteração de conteúdos de obras clássicas, tudo, supostamente, em nome da ‘igualdade’ ou do ‘aceitável’, mas sem olhar ao contexto histórico e social em que essas obras foram produzidas.

Estas novas formas de expressão devem fazer-nos questionar se não estamos a viver um retrocesso na Liberdade de Expressão que recuperámos em Abril de 1974 – um perigo de voltarmos atrás, a uma altura em que essa Liberdade de Expressão era coartada violentamente e em que a ‘verdade aceitável’ era definida por alguém, arbitrariamente, em nome de todos.

 

SABER MAIS

O que era proibido antes do 25 de Abril de 1974

As ações e atos que eram proibidos antes da Revolução dos Cravos raiavam o absurdo. Usar minissaia, um isqueiro ou biquíni, jogar às cartas num comboio ou andar de bicicleta sem licença eram situações que levavam a uma multa ou, pior, a uma detenção pela polícia e a cadastro criminal.

Estas e outras situações são descritas no livro Antes do 25 de Abril Era Proibido”, de António Costa Santos (Guerra e Paz Editores, 2024) e também na obra de Ana Sofia Ferreira “A Vida Quotidiana no Estado Novo” (Manuscrito, 2024).

Os autores debruçam-se sobre a memória coletiva, onde “perduram as lembranças da censura, da repressão política e do controlo ideológico” (…) e sobre “como era, de facto, o dia a dia de quem, na cidade ou no campo, viveu o Estado Novo”.

Era uma sociedade em quea mulher era ensinada a ser casta. O homem, como chefe de família, devia ser respeitado e obedecido, (…) a escolaridade fazia-se apenas para aprender a juntar as letras e a assinar o nome e (…) o consumo de vinho era incentivado pelo próprio regime, ficando famosos slogans como «Beber vinho é dar de comer a um milhão de portugueses»”.