A problemática da criminalização do enriquecimento ilícito[1]
Se, num discurso político, a criminalização de enriquecimento ilícito/injustificado possa parecer uma medida possível, assertiva, justa, sendo, assim, popular; ao discutir o assunto, no campo jurídico, a medida poderá não ser assim tão linear.
Criminalizar ou não o enriquecimento ilícito tem estado na ordem do dia, nomeadamente após 2007 com a aprovação[2] e ratificação[3]da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção[4], em vigor em Portugal desde 28.10.2007.
Com efeito, o artigo 20º[5] da mencionada Convenção confere aos Estados signatários a possibilidade de introduzirem nos seus ordenamentos jurídicos o crime de enriquecimento ilícito, desde que não viole a Constituição e os princípios fundamentais do seu sistema jurídico.
A Convenção caracteriza o enriquecimento ilícito como o aumento significativo do património de um agente público para o qual ele não consegue apresentar uma justificação razoável face ao seu rendimento legítimo, este enriquecimento sem causa poderá se revelar por um acréscimo de rendimento não justificável, bem como por um padrão de vida excessivo atendendo aos rendimentos declarados.
Deste modo, inúmeros foram os projetos de lei apresentados pelos diversos partidos na tentativa de criminalizar o enriquecimento ilícito, sendo que dois diplomas foram aprovados, um em 2012 e outro em 2015, ambos sendo chumbados pelo Tribunal Constitucional.
Quanto ao primeiro diploma, o Decreto nº 37/XII, aprovado em 10/02/2012, foi chumbado pelo Tribunal Constitucional, essencialmente por não existir um bem jurídico claramente identificado e digno de proteção penal; não estar suficientemente determinada a ação/omissão proibida; violação do princípio da presunção de inocência, ao presumir-se a origem ilícita do património incongruente e, por fim, tratar-se de crime subsidiário.
Por seu turno, o segundo diploma – o Decreto nº 369/XII, aprovado em 29/05/2015, na apreciação do novo diploma aprovado, vem, uma vez mais, à colação a questão do bem jurídico digno e a carecer de tutela.
“Artigo 335.º-A
Enriquecimento injustificado
1- Quem por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver património incompatível com os seus rendimentos e bens declarados ou que devam ser declarados é punido com pena de prisão até 3 anos.”
Assim, a previsão de um novo tipo de crime só estaria em conformidade com o artigo 18º nº 2 da Constituição da República Portuguesa (CRP) se o bem jurídico ora protegido se mostrasse digno de tutela penal e se revelasse carente da tutela penal.
Numa tentativa infeliz de responder às críticas relativas à inconstitucionalidade da criminalização, decorrente da falta de identificação do bem jurídico a proteger e merecedor de tutela penal, vem o legislador no próprio artigo que prevê o ilícito tipo, no seu nº 2, caracterizar o bem jurídico que visa proteger, referindo que os factos descritos no nº 1 “atentam contra o Estado de direito democrático, agridem interesses fundamentais do Estado, a confiança nas instituições e no mercado, a transparência, a probidade, a idoneidade sobre a proveniência das fontes de rendimento e património, a equidade, a livre concorrência e a igualdade de oportunidades”.
Assim, entendeu o legislador com o novo crime vir a proteger um bem jurídico digno de tutela que ele próprio caraterizou.
Ora, uma vez mais, não conseguiu o legislador identificar com clareza e precisão qual é o facto voluntário punível, não cumprindo as exigências decorrentes do artigo 29 nº 1 da CRP – o princípio da legalidade penal.
Pelo que, ao considerar-se punível a incompatibilidade ou incongruência entre duas grandezas não se identifica o concreto comportamento penalmente relevante. Ao entender-se que a censura aqui reside numa ordem numérica ou quantitativa, o crime consumar-se-ia com uma não coincidência entre os montantes relativos às duas grandezas em confronto (património tido vs rendimento declarado).
Logo, mantendo-se a confusão e a incerteza, a norma não define com a clareza exigida constitucionalmente o que é objeto de punição.
Deste modo, estando perante uma norma que associa a censura penal à verificação de um estado ou situação – incongruência/incompatibilidade entre duas grandezas – presume-se o cometimento do crime se verificada esta incongruência ou incompatibilidade, pelo que, viola o princípio da presunção da inocência previsto no artigo 32º nº 2 da CRP.
Mais, se de facto não é possível identificar qual a conduta humana objeto da censura penal, não sendo possível conhecer o que é proibido, compromete a possibilidade de se preverem os bens que justificariam a incriminação, não cumprindo, assim, a exigência do artigo 18º nº 2 da CRP. Só será constitucionalmente legítima a nova incriminação que vise a preservação de um “valor social” que careca de tutela. Nesta incriminação tão lata que poderá englobar variadíssimas situações heterogéneas não é legitimo associar uma única reação por parte do direito penal, relembrando que a intervenção do direito penal deverá ser sempre uma ultima ratio, concluindo, deste modo o Tribunal que a nova formulação, também ela, era inconstitucional.
Com efeito, a nova incriminação assentaria num pressuposto errado – todos os rendimentos e bens de origem lícita são declarados, daí se inferindo, como consequência lógica, a ilicitude da detenção dos rendimentos/ bens não declarados.
Mais, se o crime se verificava com a desproporção patrimonial, a origem lícita dos bens não consubstanciaria, per si, uma causa de justificação.
Num Estado de direito democrático qualquer nova incriminação terá que satisfazer as exigências constitucionais que decorrem dos princípios da legalidade, da necessidade de pena, carência de tutela dos bens jurídicos a proteger e presunção de inocência.
Destarte, acredita-se que a incriminação do designado enriquecimento ilícito/injustificado poderá ter poucos efeitos práticos, não contribuindo para o verdadeiro combate à corrupção, mas sim, podendo servir de medida meramente política e ser utilizado este crime como arremesso político, consubstanciando-se na medida mais simplista e populista face a um problema estruturante e que deverá ser combatido de forma realista e com medidas efetivas. Ora, o facto de termos um crime de catálogo sem aplicabilidade ou de difícil e contestável aplicabilidade não assegura um combate efetivo à corrupção nem a práticas evasivas.
No nosso ordenamento jurídico, carece de legitimidade constitucional uma proposta de incriminação que visa, desde logo, ser uma medida de resposta ao combate ao crime não punido, representando uma espécie de punição de segundo grau, isto é, face às dificuldades probatórias do crime que esteve na origem do enriquecimento, pune-se, por presunção, o “enriquecimento” que terá origem na prática de um ilícito criminal.
Se atento o artigo 20º da Convenção é dada a possibilidade, aos Estados signatários, de criminalizar o enriquecimento ilícito, não menos verdade é que, o mencionado artigo ressalva a Constituição e princípios fundamentais de cada Estado.
Ora, não há qualquer dúvida que a corrupção ameaça o Estado de direito democrático e que se mostra um entrave ao desenvolvimento económico, logo, é imperativo que seja missão do Estado combater este tipo de comportamentos que representam um desvio à conduta de quem está incumbido de exercer um cargo ou função estritamente vinculado ao interesse público.
Aqui chegados, uma certeza poderemos avançar, o enriquecimento ou acréscimo patrimonial, mais tarde ou mais cedo, vai revelar-se e, não estará ad eternum guardado ou ocultado. E nesse momento serão os mecanismos do direito fiscal capazes de responder ao problema?
Na verdade, tendo em conta que o Direito Penal deverá atuar como ultima ratio e estando o nosso ordenamento jurídico dotado de outros mecanismos que, naturalmente, reformulados e melhorados, poderão dar resposta ao problema do enriquecimento injustificado, julgamos ser esta a via (direito fiscal/direito penal tributário com tributação por métodos indiretos, tributação de manifestações de fortuna, criminalização por via do preenchimento de ilícitos típicos relativos a infrações tributárias e ainda com o reforço do mecanismo de perda alargada dos instrumentos/ bens provenientes do crime), que melhor se insere no sistema jurídico e salvaguarda os direitos fundamentais.
Paula Madureira Rodrigues
Advogada Sénior na sociedade de advogados Dantas Rodrigues & Associados
Mestre em Direito – Especialização em Ciências Jurídico-Económicas Faculdade de Direito da Universidade do Porto.
[1] O presente artigo foi retirado e adaptado do trabalho apresentado no âmbito do XI Curso de Pós-Graduação em Direito Fiscal das Empresas do Instituto do Direito das Empresas e do Trabalho, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, com o título “O enriquecimento ilícito – possível resposta no âmbito do Direito Fiscal”, sob orientação da Professora Doutora Susana Aires de Sousa.
[2] Aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 47/2007, de 31/09.
[3] Ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 97/2007, de 21/09.
[4] Convenção contra a Corrupção, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de 2003.
[5] Refere o mencionado artigo 20º da Convenção “Sem prejuízo da sua Constituição e dos princípios fundamentais do seu sistema jurídico, cada Estado Parte deverá considerar a adopção de medidas legislativas e de outras que se revelem necessárias para classificar como infracção penal, quando praticado intencionalmente, o enriquecimento ilícito, isto é o aumento significativo do património de um agente público para o qual ele não consegue apresentar uma justificação razoável face ao seu rendimento legítimo.”