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A ÉTICA, O DIREITO E A JUSTIÇA

Podemos pensar nisto? Em que termos?

 

Para podermos equacionar a relação entre a Ética, o Direito e a Justiça, devemos começar por definir cada uma destas três instituições. Consideremos, então e assim,  simplesmente, as seguintes brevíssimas definições:

Ética – É, sob o ponto de vista da ciência, a parte da Filosofia que trata da moral e dos costumes, que tem por objecto o juízo de apreciação que conduz à distinção do bem e do mal. Terá em conta a sua aplicação à época concreta. Entre nós, à Ética nos

Pedro Panzina
Juiz Auditor no Tribunal Eclesiástico do Porto

referimos mais frequentemente como “Moral”, ainda que com o risco de a associarmos à moral religiosa (qualquer que seja a religião), referência que, assim, poderá ser redutora da Ética.

Direito – É o conjunto das leis (no sentido amplo) emanadas por quem, nos diferentes níveis de organização das sociedades, detém o poder legislativo, pelas quais se regulam geral e abstractamente as relações entre as pessoas e entre estas e tais organizações, definindo direitos, deveres e as consequências das respectivas infracções, conjunto a que vulgarmente se designa por direito positivo, em contraponto com a cultura humana e a designada lei natural (não confundir com lei da natureza). Segundo LARENZ, “O Direito é uma ordem de convivência humana orientada pela ideia de uma ordem “justa”, ideia essa a que, pelo seu próprio sentido, tal ordem vai referida”[1].

Justiça – É, não só, o conjunto dos meios administrativos organizados para fazer a aplicação do Direito e, de modo especial, as decisões concretas tomadas pelos competentes órgãos judiciais quando sancionam (com penas ou medidas de segurança) os delitos em violação das normas legais cometidos, tendo em consideração a “concepção preventivo-ética da pena”[2] (os fins pretendidos do acto sancionador serão a prevenção especial e prevenção geral).

O desafio que, nesta matéria, se nos coloca é saber se a Ética predomina no Direito e na Justiça, isto é,

a) se a produção legislativa (no sentido amplo) tem presente os valores ditados pela ética e se nesta procura os fundamentos, e

b) se a aplicação que a Justiça faz do Direito respeita a ética.

Na elaboração das leis, cumpre-nos perguntar e apreciar se, para que se conformem com a ética vigente,

a) tais leis proíbem, ou não, comportamentos eticamente reprováveis, sancionando-os, caso em que o juízo sobre a correspondente conformação ética recai sobre o legislador, ou se,

b) tais leis são permissivas quanto a tais comportamentos eticamente reprováveis, portanto não penalizadoras, assim deixando que o juízo ético recaia sobre a pessoa que os pratica.

Uma das concepções da relação entre a Ética e o Direito, “o Direito é entendido como a expressão de uma ordem de relações, inscrita nos próprios seres humanos … (pelo que) o Direito procura, de modo constante, a regra objectiva que regula permanentemente as relações entre as pessoas. O direito positivo é então considerado  com a obrigação de formular e precisar as exigências inscritas na natureza dos seres. Este direito dito natural precede o direito positivo e funda-o”[3]. Sobre este “direito dito natural”, Hans Kelsen escreveu que “Um acto de conduta humana pode muito bem levar consigo uma auto-explicação jurídica, isto é, uma declaração sobre aquilo que juridicamente significa”[4].

Tenhamos presente este exemplo:

A interrupção voluntária da gravidez era, segundo a ética então vigente, um comportamento eticamente reprovável e a lei então proibia a sua prática, penalizando quem o praticava, fosse quem interrompesse a sua gravidez, fosse quem ajudasse. Assim, então, segundo a ética vigente, a lei conformava-se com os valores éticos. Porém, era sabido que era frequente a interrupção da gravidez, a qual por ser clandestina punha em causa a segurança da pessoa que queria abortar, como era sabido que havia casos em que parecia haver compreensão, como os casos extremos de gravidez indesejada (como a resultante de violação), ou os de mal formações congénitas graves e outros, que parecem ter conduzido a considerar que o valor ético da preservação da vida intra uterina poderia ter mudado e, assim, depois de muitas auscultações, foi decidido despenalizar, em certas circunstâncias, a interrupção voluntária da gravidez. Assim, a interrupção voluntária da gravidez, se efectuada nas circunstâncias previstas na lei, não é penalizada. Isto pode não significar que a interrupção voluntária da gravidez  tenha passado a ser generalizadamente uma prática eticamente aceitável. Como, então, se disse em tempo da discussão da lei, o tema era fracturante, pelo que não é estranha a existência de sectores da sociedade que não mudaram e que continuam a manifestar-se sobre  a interrupção voluntária da gravidez como eticamente reprovável. O que aconteceu, portanto, com essa lei, foi que o juízo ético da interrupção, por quem entenda dever fazê-lo, passou a recair sobre a pessoa que pratica a interrupção voluntária da gravidez e sobre o profissional da saúde que intervém e já não sobre a lei.

Outro exemplo, diferente, poderá ser este:

Ainda que a ética vigente considerasse a violência doméstica como eticamente inadmissível, a verdade é que o legislador não a penalizava especialmente na lei. Aqui, o juízo ético recaía no agressor e no legislador, que não tinha especialmente regulado na lei tal situação. Seja porque os casos de violência doméstica aumentaram muito, seja porque se tornaram publicamente mais conhecidos, o juízo ético caiu mais densamente sobre o legislador que teve, por isso, de criar lei visando especialmente a violência doméstica, penalizando fortemente o agressor e protegendo adequadamente a vítima.

Na aplicação das leis, cumpre-nos perguntar e apreciar se, para que se conforme com a ética vigente,

a) o decisor judicial deve aplicar integralmente a lei, mesmo se e quando esta não está conformada com a ética vigente, ou

b) a decisão judicial é tomada no tempo próprio e respeita a medida adequada a que se cumpra o seu fim previsto na lei.

No âmbito da aplicação das leis, talvez se esteja longe da fundamentação ética das decisões judiciais, em resultado de se poder tender “para o racionalismo absoluto, para o relativismo ético radical, para o positivismo jurídico”[5]. Muitos defendem que uma justiça demorada, ou tardia, não é justa. Muitos não compreendem que, para comportamentos ilícitos aparentemente iguais, sejam aplicadas medidas de segurança ou penais diferentes, sem que se perceba que juízo ético teve o decisor na formulação da sua decisão. A prevenção geral (que é dirigida à comunidade) e a prevenção especial (que é dirigida ao destinatário da sanção) serão alcançadas com decisões judiciais obscuras, insuficientemente explicadas, aparentemente eivadas de subjectividade, geralmente incompreensíveis, reconhecidamente prejudicais para a recuperação do destinatário?  As decisões judiciais, para além de legalmente conformadas, estão eticamente fundadas? Deve um decisor judicial, em nome da ética, escusar-se a aplicar uma pena máxima, ou não aplicar pena nenhuma?

Tomemos estes exemplos:

Há regimes legais que prevêem a pena de morte, ainda que as leis universais, sobretudo as que versem sobre os direitos humanos, considerem que tal pena é desumana, é irreversível (o que é ainda mais grave caso tenha sido aplicada e executada por erro), e é uma manifestação de atraso civilizacional. Nestes regimes, deve o decisor, em respeito pela ética, recusar-se a participar num acto condenatório eticamente injusto? Ou participando no acto condenatório, não aplicar uma pena eticamente injusta?  Pode e deve o decisor judicial eximir-se a que o juízo ético negativo da decisão recaia em si, ainda que a lei lhe diga que a sua decisão é lícita? Não deveria a lei prever e estabelecer o direito a exercer a “objecção de consciência” dos decisores judiciais?

Outro exemplo:

Entre nós, a lei não penalizava o suicídio, mas sim a instigação e o auxílio. Hoje, com a previsão legal do suicídio assistido e da eutanásia, despenaliza-se o auxílio. São restritas, bem explicitadas e muito rigorosas as condições legais da despenalização do auxílio e fixado que os auxiliares (profissionais de saúde) podem invocar a “objecção de consciência” e, assim, não participarem no acto. A lei poderá ter legalizado o auxílio ao suicídio, mas não terá tornado, para a generalidade da sociedade, o acto eticamente conforme. Este continua a ser um tema fracturante da sociedade.

Será necessário debater as questões éticas relacionadas com o Direito e a Justiça em ordem a que “a riqueza das correntes contemporâneas do pensamento jurídico, algumas delas admiráveis criações do espírito humano … (como, entre outras, as) versões modernas do contrato social, o funcionalismo sistémico, a «autopoiesis», a doutrina da justiça como processo, concepções que apelam à importância do discurso ético e à necessidade de uma fundamentação discursiva da racionalidade prática, ligadas com frequência ora à teoria da linguagem, ora a acepções de verdade como consenso”[6].

Podemos pensar nisto? Em que termos?

Abril/2024

Pedro Panzina

 

 

 

 

[1] Citado por Machado, João Batista, in “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador

[2] Segundo Carvalho, Américo A. Taipa de, in “Direito Penal, Parte Geral, Questões Fundamentais

[3] Segundo Minnerath, Roland, in “Para uma Ética Social Universal

[4] Kelsen, Hans, in “Teoria Pura do Direito

[5] Segundo Minnerath, Roland, in “Para uma Ética Social Universal

[6] Frada, Manuel Carneiro da, in “A Verdade e o Direito