
Paula Veiga, Professora Associada da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Investigadora integrada do Instituto Jurídico da FDUC e investigadora do Centro de Direitos Humanos/Ius Gentium Conimbrigae (CDH/IGC).
Vivemos a grande velocidade.
As características deste novo mundo alteraram noções básicas da teoria política, da ciência política, do direito constitucional e do direito internacional, designadamente, as de Estado, Constituição e povo. Mais recentemente, até se ouvem vozes a proclamar uma outra conceção de democracia! O direito internacional é, cada vez mais, uma disciplina jurídica que tem ganho importância no mundo do Direito, num percurso que começou, pelo menos, nos anos 50 do século XX e que na última década se tem vindo a intensificar.
A compreensão dos direitos na sua formulação clássica, isto é, mediante o direito constitucional ou, isoladamente, pelo direito internacional, mudou, porque se alteraram os fundamentos de proteção das estruturas subjetivas[1]. Efetivamente, sente-se o abandono das bases de um velho modelo hobbesiano do Estado, em que a legitimação do poder se estabelecia na trilogia direito – poder – direitos, isto é, havia um pacto constitutivo entre os cidadãos, que se sujeitavam ao poder “soberano”, porque era ele que reconhecia as suas posições subjetivas.
Perante o consenso, quase generalizado, da necessidade de internacionalização da proteção dos direitos (agora vertidos na categoria dogmática dos direitos humanos), há uma mutação na forma de entender os nossos direitos subjetivos.
Neste novo ambiente, o que esperar dos direitos humanos?
Aos dias de hoje (segunda década do século XXI), já todos sabemos que Gandhi, Mandela ou Luther King rimam com direitos humanos. Mas, também aos dias de hoje continuamos a clamar pela proteção destes direitos. Os novos fluxos migratórios, as questões ambientais, as perseguições políticas ou religiosas espreitam a cada esquina e o mundo vive dias de grande incerteza.
No plano das proclamações, desde meados do século XX que se vem propagando a bela e boa bandeira de defesa dos direitos humanos (que, do ponto de vista filosófico, poderá ser confundida com uma nova ordem mundial ao estilo kantiano).
Mas, há que não escamotear uma certa desilusão, sensivelmente desde o final da primeira década do século XXI, em torno desse discurso da defesa dos direitos humanos, em muito propiciada pelo facto de estes terem sido largamente expandidos em «papéis» (nacionais e internacionais), sem muitas das vezes haverem sido garantidos e/ou realizados.
Com efeito, o mundo continua a não ser um espaço pacífico e harmonioso. As pessoas, muitas pessoas, demasiadas pessoas continuam a viver infelizes, inseguras e sem direitos. Continuamos a assistir, aqui como lá, a desigualdade, discriminação, pobreza, conflito, guerra, opressão, etc.
Voltemos, pois, aos fundamentos dos direitos humanos. Como ponto de partida, abandonemos os tradicionais campos da moral e do direito natural. A fundamentação dos direitos humanos numa dada ordem moral e/ou religiosa pode levar à animosidade, tendo a capacidade de prejudicar a própria categoria que se quer reconhecer e proteger. Daí que prefiramos a fundamentação destes direitos em moldes racionais, à semelhança do que sucede como muitos outros institutos jurídicos do mundo moderno. Efetivamente, se o ceticismo epistemológico e o relativismo moral têm caraterizado o direito pós-moderno, chegou o momento de erigir o jurídico novamente de acordo com moldes racionais.
Assim, um dos fundamentos dos direitos humanos está relacionado com a natureza racional da pessoa e é a proteção da sua autonomia, na medida em que os direitos são, por definição, institutos jurídicos que protegem a autonomia das pessoas. Outro dos fundamentos racionais dos direitos humanos radica na vulnerabilidade da pessoa, conceito essencial no direito internacional dos direitos humanos. Efetivamente, a proteção de mulheres, crianças, migrantes ou refugiados constitui o coração da teoria destes direitos.
O grande desafio dos próximos tempos será, assim, o da consideração de diferentes círculos jurídicos – o nacional, o regional e o internacional –, o que cria a tarefa de projetar uma teoria dos direitos humanos que transcenda abordagens culturalmente particulares. O que queremos dizer é que o universalismo teórico dos direitos é possível sem qualquer constrangimento epistemológico. Para erguer o edifício de uma ciência é sempre necessária uma teoria. Nesse sentido, a mudança de paradigma do sistema jurídico como foi pincelada supra deverá ser encarada enquanto tentativa de aproximação a um plano dotado de maior cientificidade. Neste contexto, uma teoria de direitos humanos pode ter uma grande importância para os próprios, bem como para o direito internacional em geral. Uma teoria de direitos humanos possibilitará, nomeadamente, o desenvolvimento de novos princípios jurídicos, como o que já vimos aflorado na jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (referimo-nos ao novo princípio jurídico da convivência comum).
O direito internacional, e consequentemente os direitos humanos, terá cada vez mais influência na teoria jurídica se for mediado pelo legislador, quer de âmbito estadual, quer ao nível de outros sujeitos do direito internacional. Com efeito, na ausência de órgãos internacionais centrais de execução, o direito internacional tem muito mais chances de sucesso caso seja efetivamente cumprido pelos Estados, o que significa que o seu futuro depende grandemente da «legitimidade local» que venha a assumir. Nesse sentido, as regiões, e os respetivos sistemas de proteção de direitos humanos, podem ter um papel fundamental na legitimidade e na eficácia do direito internacional. A eles acrescem a incorporação das normas de direito internacional, maxime de direitos humanos, nos direitos internos dos Estados, sobretudo no plano supra-legislativo. A infraestrutura do direito internacional tem de assumir um modelo adequado para a sua eficácia porque se a configuração do direito internacional é específica, deve ser adaptada a essa especificidade. Daí que nos pareça essencial um princípio da abertura aos direitos humanos, em que as instâncias estaduais, aí incluídas as jurisdicionais, decidam pautadas por uma hermenêutica de aplicação preferencial do preceito que seja mais favorecedor do direito para o seu destinatário, capaz de concretizar o human rights approach, em detrimento do (clássico) State approach. As teorias jurídicas evoluem por acumulação e não por mudanças drásticas. De resto, o próprio direito internacional dos direitos humanos vem-se afirmando rejeitando alguns dos princípios clássicos do direito internacional geral, como, por exemplo, o princípio da competência nacional exclusiva e o princípio da não ingerência nos assuntos internos dos Estados.
Além de que futuro para os direitos humanos devemos perguntar-nos que direitos humanos para o futuro. Estamos convictas de que o debate mais disruptivo dos próximos tempos será o de saber se os direitos humanos devem abandonar a sua natureza antropocêntrica e ser expandidos a outros sujeitos (constituem um bom exemplo os questionamentos sobre direitos “humanos” dos robots ou direitos no domínio da inteligência artificial…). Mas será, também, um grande desafio estabelecer novas regras considerando os domínios do tráfico humano, da digitalização e dos ataques a jornalistas associados a disseminação de desinformação.
Há muito para fazer, portanto! Só nos resta pôr mãos à obra, para defender os direitos humanos.
[1] Temos vindo a defender essa alteração. Nesse sentido, vide, inter alia, Paula Veiga, Direito constitucional e direito internacional no contexto do constitucionalismo global: um roteiro pedagógico, Petrony, Lisboa, 2020 e «A Convenção Europeia de Direitos Humanos no Ordenamento Jurídico Português de Direitos Humanos», in Revista da Ordem dos Advogados, III/IV, 2018, pp. 555-567.