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Gladiadores contra a corrupção – do coliseu ao fórum

 

O coliseu e o fórum romanos

No final de 2024, o realizador Ridley Scott trouxe de volta aos cinemas a sua visão da Roma Antiga vista através dos olhos de Gladiadores, no imponente Coliseu, cujas ruínas ainda hoje podemos encontrar na capital italiana. Junto a essas ruínas temos outras, não menos importantes, as do fórum romano, o centro da vida pública, local de cerimónias triunfais e de eleições, onde se realizavam os principais discursos de políticos ou advogados (de que ainda hoje temos fragmentos escritos que lemos e estudamos nas nossas universidades). Era no fórum que se realizavam os processos criminais, se julgava a corrupção e se via a justiça a ser feita.

Assistente Convidado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL). Investigador no Centro de Investigação de Direito Privado da FDUL. Chief Legal Counsel e Advogado no Banco de Investimento Global (BiG).

Esta ideia de transparência, visibilidade, e de “grandes audiências” é uma característica comum àqueles dois espaços: o coliseu e o fórum. É, também, algo que podemos associar aos maiores fenómenos públicos de sucesso nas televisões ou jornais, em papel ou online, modernamente. O desporto e a justiça, especialmente a justiça associada aos processos relacionados com o mau governo ou a corrupção, trazem audiências garantidas e atraem multidões, a acompanhar programas, a encher estádios, à porta de tribunais ou a protestar contra governantes corruptos ou “capturados” por interesses privados.

Se, há mais de dois mil anos, os gladiadores também enchiam coliseus, os futebolistas de hoje fazem o mesmo. Também os advogados e comentadores de processos judiciais empolgam os seus concidadãos, como o cônsul romano Marco Túlio Cícero fez com as suas Catilinárias (em latim, In Catilinam Orationes Quattuor), em 63 a.C., denunciando a conspiração pretendida pelo senador Lúcio Sérgio Catilina, um dos “alegadamente corruptos” daquela época.

Tentando “viajar no tempo” até essa Roma Antiga (sendo certo que o Império teve várias fases e várias respostas jurídicas para o(s) problema(s) de corrupção), podemos tentar encontrar algumas pistas ou “gladiadores” para lutar hoje contra esse flagelo que continua a atormentar a vida em sociedade[1].

Procurarei, abaixo, convocar alguns desses gladiadores antigos para inspirar ou fazer refletir sobre ideias para combater a corrupção até 2030.

 

  • Um primeiro gladiador: maior especialização/qualificação técnica dos investigadores e julgadores de corrupção

Tal como já se verificou com a atribuição de competências específicas a DIAPs e ao DCIAP e, por exemplo, no caso das infrações financeiras, ao Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, poderíamos apresentar propostas concretas de criação de novos tribunais especializados e de formas que, por um lado, poderiam acelerar os processos de corrupção e, por outro, centralizar e garantir que quem trata dos mesmos tem mais experiência e conhecimento do que os juízes criminais em geral e, por fim, assegurar a visibilidade, transparência e celeridade que as populações exigem para este tipo de crimes.

Sendo certo que é uma constante que todos os programas de partidos políticos incluam umas páginas em que prometem combater a corrupção, não deixa de ser verdade que em nenhuma das últimas propostas de alteração constitucional se incluíram propostas para abrir uma exceção para a criação de tribunais especializados para crimes deste tipo (apesar de muitos especialistas já os virem propondo há muito). De igual forma, e relacionado também com o “próximo gladiador”, as propostas de orçamento de estado e os orçamentos para o Mecanismo Nacional de Combate à Corrupção (“MENAC”) ou iniciativas conexas são muito reduzidos e os responsáveis por estas unidades queixam-se frequentemente de falta de meios.

Mais do que leis, falta executá-las e falta investir na justiça, como na saúde ou na educação. Se se diz que “onde tens o teu tesouro, é onde terás o teu coração”, podemos afirmar igualmente que onde tivermos os nossos fundos, aí estarão verdadeiramente as nossas prioridades e os investimentos na justiça e, no combate à corrupção, têm sido bem inferiores às declarações de intenções que tantos proclamam: basta ver o caso deste MENAC, tanto tempo sem sede, sem presidente e, a terminar a estratégia 2020/2024 de combate à corrupção, sem ter sequer metade do seu quadro de pessoal preenchido.

Quando estudamos a forma como o Direito romano lidou com a corrupção, verificamos a autonomização de tribunais específicos, com maior peso de decisões por um júri de cidadãos, assistimos a uma especificação de tipos de ilícitos, a um desenho de crimes que estão na origem daqueles que hoje temos nos países romano-germânicos, mas vemos, na História, muitas (boas) soluções que se perderam e devem inspirar os legisladores modernos.

 

  • Um segundo gladiador: a previsão legal, com a criação de estatuto próprio de gabinetes de apoio nestas áreas (ao MP e aos juízes)

Em Roma também se teve esta consciência – que hoje devemos ter com muito maior realismo – de que, para investigar criminalidade económico-financeira de elevada complexidade, são necessários conhecimentos técnicos que ultrapassam o domínio do Direito e, mesmo no mundo do Direito, requerem formação distinta e específica.

Assim, parece-me necessário criar figuras junto dos nossos tribunais que possam apoiar procuradores do Ministério Público e principalmente os juízes que julguem este tipo de processos. Estas novas figuras poderiam ter um estatuto próximo do dos peritos judiciais, mas seriam entidades novas. Julgo que é essencial dotar as unidades que investigam corrupção de técnicos especializados (economistas, data scientists, mas também juristas especializados) que auxiliem o Ministério Público a investigar e a perceber os problemas e também a enquadrar e, principalmente, a ajudar os juízes que têm de julgar estes assuntos.

É mais uma área em que os meios e o investimento são extremamente necessários, mas em que é óbvio que temos de manter as expetativas muito reduzidas e limitadas: precisamos de mais psicólogos e apoio nas prisões, precisamos de mais técnicos na investigação criminal e precisamos de maior apoio mesmo ao longo do julgamento e do processo em geral, mas os orçamentos, os bens e os meios são escassos demais. Investir nestes gladiadores poderia trazer mais resultados do que qualquer nova iniciativa legislativa.

 

  • Um terceiro gladiador: um debate sobre o princípio da oportunidade penal

Por outro lado, em Roma já havia noções de “economia” e há duas ideias-chave que são valiosas aqui: a noção de que os meios são escassos e o dilema/problema da armadilha do prisioneiro. Quanto ao último, desenvolveremos adiante, mas temos de perceber que a corrupção é, parcialmente, um “crime sem vítima” (todos o somos, enquanto sociedade), mas é um crime específico em que o corrupto e o corruptor estão amarrados por um segredo, sem incentivos para o quebrar, havendo uma perspetiva de continuidade da relação, escondida dos olhos da justiça.

Por outro lado, temos de perceber que todos temos limites e não podemos investigar e acusar tudo… Também em Roma se começou por investigar alguns dos tipos de crimes, após a criação de tribunais especiais chamados de quaestio perpetua, desenhados com um procedimento específico para julgar e sancionar unicamente estes ilícitos, seguindo-se a criação de outros quaestiones perpetuae, posteriormente, para novos tipos de crime previstos por lei.

O período que se seguiu, no final da res publica, terá sido de grande intensidade legislativa e vários comportamentos que consubstanciavam corrupção, em sentido amplo, adquiriram natureza criminal, sendo aplicadas penas, mais ou menos severas, alterando-se o procedimento em tribunal, e definindo-se por lei que tipo de comportamentos correspondiam a esses ilícitos (repetundae, ambitus, peculatus e falsum). Podemos, assim, encontrar neste período antecedentes de um verdadeiro princípio da legalidade (uma exaustividade do combate aos crimes de corrupção).

Os grandes argumentos a favor do princípio da legalidade no processo penal prendem-se exatamente com o facto de ser através dele que mais adequadamente se evita a corrupção do investigador/julgador: se não conferimos discricionariedade na escolha dos crimes a serem perseguidos ao MP ou aos órgãos de polícia criminal, evitamos a possibilidade de captura dos mesmos. Não temos de nos preocupar com “quem guarda os guardas”, se os guardas estão obrigados a guardar tudo.

O problema é que, realisticamente, os guardas não conseguem guardar tudo. Os sistemas anglo-saxónicos, mais utilitaristas e libertários nas suas filosofias de base, já o reconhecem há muito… No entanto, podemos ter formas delimitar a discricionariedade e “restringir” os guardas e evitar que se corrompam os investigadores, com base em critérios delimitados e apertados, como, por exemplo, a baixa gravidade das infrações, o facto de serem infrações primárias ou já ter havido reparação dos danos causados, etc. (só recolhendo inspiração no recente princípio da oportunidade consagrado no Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, alterado pela Lei n.º 23-A/2022, de 9 de dezembro, que adicionou o novo artigo 209.º-A[2] que introduziu na ordem jurídica portuguesa este princípio, especificamente para o Direito sancionatório bancário).

 

  • Um quarto gladiador: o enquadrar do whistleblowing, das hotlines e dos incentivos a sistemas de denúncia (legalmente previstos e limitados)

No final de 2021, assistimos à transposição para o Direito português da Diretiva (UE) 2019/1937 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2019, relativa à proteção das pessoas que denunciam violações do direito da União, estabelecendo um “regime geral de proteção de denunciantes de infrações” através da Lei n.º 93/2021, de 20 de dezembro.

Este regime, baseado em Direito da União Europeia, vinha sendo exigido há muito e obrigou a que muitas instituições criassem mecanismos de denúncias internas, tanto no setor público como no setor privado. Para muitos tipos de infrações – desde o assédio sexual ao moral, saltando para a corrupção que deu mote a este texto – a existência e criação de linhas de denúncia é essencial e ajuda a quebrar os “pactos de segredo”, permitindo o anonimato, aproveitando os momentos em que a “confiança” entre corruptor e corrupto falha, protegendo as vítimas ou os conhecedores de crimes que têm medo de represálias.

No entanto, também temos, desde 2011, linhas de denúncia de corrupção, no site do Ministério Público, (“Corrupção: denuncie aqui”) que não têm qualquer suporte legal e podem ter problemas constitucionais e vir a contaminar os processos que influenciaram[3].

Sendo certo que a cultura romano-germânica é mais avessa a denúncias (anónimas, obrigatórias ou vinculadas), provavelmente devido aos traumas “recentes” associados aos regimes autoritários que vigoraram na Alemanha, na França, na Itália, na Espanha ou em Portugal – o que talvez explique a maior preocupação e facilidade em aplicar regimes protetores da privacidade como o Regulamento Geral da Proteção de Dados – as experiências dos mecanismos “Sarbanes-Oxley” (criado em 2002, nos EUA, que prevê determinadas obrigações de reporte – e denúncia – para empresas, na sequência do escândalo Enron) têm influenciado os Direitos ocidentais, de novo remotamente recordando as obrigações de denúncia que já foram previstas pelo Senado romano para controlar os governadores de províncias de um gigante império.

 

  • Um quinto gladiador: a previsão de consequências civis (indemnizações, por exemplo) que os condenados por corrupção tenham de pagar aos maiores lesados

Outro bom legado que podemos retirar desse Império são os casos em que os governantes corruptos eram condenados a pagar às comunidades lesadas uma indemnização correspondente a um múltiplo dos lucros que conseguiram com corrupção, dando maior transparência à condenação, e sentindo-se alguma “reparação”, além da punição.

Também hoje, por exemplo, numa Câmara Municipal, determinadas taxas poderiam ser direta e visivelmente reduzidas por causa de uma condenação. Assim, por exemplo, determinados impostos municipais poderiam ser reduzidos (com base num valor revelado na nota de cobrança) caso um autarca condenado fosse obrigado a indemnizar o município repondo valores que por sua vez serviriam para aliviar as taxas cobradas por esse mesmo município, desta forma se recuperando a ideia de ilícitos civis a par dos ilícitos penais (sem violar o princípio da legalidade penal – só pode haver uma pena para um crime), mas prevendo penas acessórias ou de substituição em que os ex-governantes corruptos tivessem de prestar serviço a favor da comunidade, trabalhar em prol dos outros, assim tentando atingir maior “paz social”, que é uma das grandes vítimas da corrupção, levando à descrença na democracia ou nas instituições e mecanismos sociais e cívicos.

 

  • Um sexto gladiador: uma clarificação e sistematização da forma como a colaboração dos arguidos pode ser valorada e valorizada

Por fim, convoquemos um gladiador de todos os tempos e que atualmente já existe no Direito português e da União Europeia: a valorização da colaboração dos co-arguidos em processos de corrupção.

Exatamente pela “armadilha do prisioneiro” de que falávamos acima, é necessário criar incentivos e prever mecanismos na lei que levem à quebra do pacto de silêncio, do acordo secreto entre corruptos e corrompidos (em sentido lato). Na lei da concorrência já existe o instituto da clemência na sua máxima extensão, nos restantes ramos do Direito sancionatório financeiro (bancário, dos valores mobiliários ou dos seguros) já existem algumas emanações e no Código penal já prevemos atenuações especiais, valoramos a colaboração, mas não temos institutos como o da “delação premiada” que, sob várias vestes, tem sido muito criticada, como instituto mais “americano” (do norte e do sul), mas que pode significar muitas coisas diferentes, quando e se trazida para o Direito português.

Outros institutos como o “enriquecimento ilícito” ou o “enriquecimento injustificado” foram apreciados negativamente pelo nosso Tribunal Constitucional e considerados contrários à Constituição.

Parece-me que várias destas propostas inspiradas nos gladiadores de Roma não chocariam com a nossa Lei Fundamental nem implicariam que a prova obtida por sua causa fosse nula ou inválida. É importante perceber quais são e começar por dar pequenos passos. De seguida, se há dúvidas quanto à conformidade com a Constituição (como quanto aos tribunais especializados, o princípio da oportunidade penal ou a colaboração de co-arguidos contra os outros), podemos enfrentar o problema com propostas de revisão constitucional. No entanto, como disse acima, sinto verdadeiramente que mais do que novas leis ou reformas legislativas, precisamos de orçamentos, planeamento, investimento e meios. Digam-me onde está o vosso tesouro contra a corrupção, e eu direi onde está verdadeiramente a vossa intenção.

Miguel da Câmara Machado

[1] Há uns anos, escrevemos um pequeno livrinho dedicado a este tema, que inspira as bases deste texto, remetendo agora para lá, para maiores desenvolvimentos: Meios de combate à corrupção no Direito romano e na actualidade – Um regresso ao futuro, Lisboa: AAFDL Editora, 2018.

[2] Já tratámos igualmente deste tema, no artigo “«Corrupção: Denuncie Aqui» – Vale tudo no combate à corrupção?” in Revista de Concorrência & Regulação, Ano V-VI, N.º 20-21, Coimbra, Almedina, out.2014-mar.2015, pp. 51-129.

[3] Abordámos esse princípio e outras inovações legislativas num texto específico, “Um princípio que pode ser uma “estrada de tijolos amarela” e quatro pequenas alterações: Notas sobre as regras sancionatórias decorrentes do quase secreto RGICSF’22”, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 82, Vol. III/IV, Jul./Dez. 2022, pp. 647-667.

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