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O país ‘estremece’, surpreende-se e agita-se de cada vez que mais um caso mediático envolvendo acusações de corrupção atinge uma figura pública ou política. Fazem-se abaixo-assinados, pedem-se diagnósticos, estudos e inquéritos e as sondagens dizem que a corrupção é o tema que mais preocupa os portugueses – acreditando estes que vivem num dos países mais associados a este flagelo.

Há cerca de um ano, foi isto que aconteceu quando o, então, presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), Henrique Araújo, denunciou, em entrevista ao jornal Nascer do Sol a “corrupção instalada” em Portugal,com expressão muito forte na administração pública”, e afirmou que “a justiça não é uma prioridade para o poder político. (…) Não vejo que haja por parte dos responsáveis políticos a vontade de alterar alguma coisa”.

Entre os problemas para os quais defendia mudanças na legislação, Henrique Araújo referia os megaprocessos e as leis processuais, o fim do efeito suspensivo das decisões judiciais nos recursos para o Tribunal Constitucional e o combate à corrupção – para cuja luta defendeu a criação do crime de enriquecimento ilícito. Na altura, o presidente do STJ considerava que o poder político de então não tinha conseguido executar as mudanças necessárias e que “nada de significativo mudou na justiça” desde que ele próprio tinha assumido o cargo (em 2021).

Já no início deste mês, o recém-empossado Procurador-Geral da República, Amadeu Guerra, também escolheu o combate à corrupção como tema prioritário, na sua primeira entrevista depois de assumir o cargo, no âmbito do Episódio No. 100 do POD Esclarecer – veja aqui, um texto resumo das declarações proferidas sobre esta matéria.

Já no seu discurso de tomada de posse, Amadeu Guerra tinha deixado claro que queria perceber por que motivo algumas das investigações sofrem atrasos, com a solução a poder passar por uma relação mais próxima com a Polícia Judiciária. O PGR disse, então, que “nos crimes de corrupção e crimes conexos, bem como na criminalidade económico-financeira, é minha intenção acompanhar de perto, através dos diretores dos DIAP Regionais e do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), as razões dos atrasos“, sublinhando que, “ao mesmo tempo, devemos envolver a Polícia Judiciária de forma efetiva, face ao aumento recente dos seus meios humanos: inspetores, peritos e meios tecnológicos“.

Mas, afinal, passando sobre as perceções mais ou menos corretas e o ‘circo mediático’ criado pelos processos mais famosos, o que há a dizer da corrupção em Portugal? É, de facto, um problema em ascensão? Os casos que vemos nos Media são representativos de uma realidade ainda mais grave? Tem sido feito pouco trabalho para combater este problema? Pode haver Justiça, num país em que a corrupção grassa?

A Realidade Portuguesa nos Índices Internacionais

A edição de 2023 do Índice de Perceção da Corrupção, publicado anualmente pela Transparency International (TI), revelou que o combate à corrupção em Portugal continua a não avançar e tem falhas ao nível da integridade na política.

Nesse ano (dados mais recentes), Portugal é avaliado no conjunto dos países da Europa Ocidental e União Europeia obtendo 61 pontos (em 100), fixando-se na 34ª posição em 180 países. Volta a igualar a pontuação registada em 2020 (a pior registada desde 2012), continuando abaixo do valor médio da sua região (65 pontos).

Especificamente sobre Portugal, o relatório da TI coloca Portugal como um dos países da Europa em que se registam falhas ao nível da integridade na política. Para os responsáveis da TI, o facto de Portugal ter mergulhado numa crise política quando António Costa se demitiu na sequência da detenção do seu chefe de gabinete, no âmbito da “Operação Influencer”, é um exemplo de como os escândalos de integridade política persistem.

A instituição sublinha, assim, a necessidade de serem reforçadas as regras relativas aos conflitos de interesses, às normas éticas e à transparência no exercício de funções públicas e nas atividades de lobbying. A TI desafia, ainda, Portugal a colocar como prioridade na agenda política uma regulamentação mais rigorosa em matéria de lobbying, após vários anos de atrasos.

O Índice de Perceção da Corrupção (CPI) foi criado pela TI em 1995 e é, desde então, uma referência na análise do fenómeno da corrupção, a partir da perceção de especialistas e executivos de negócios sobre os níveis de corrupção no setor público.

Governos e Combate à Corrupção: o que tem sido feito?

Já em 2024, o novo Governo, liderado pela coligação da Aliança Democrática, dedicou uma das prioridades do seu Programa do Governo ao combate à corrupção: entre as medidas propostas, o executivo apontava a regulamentação do lobbying, a criminalização do enriquecimento ilícito ou, em alternativa, a criação legal de mecanismos como a “Ação Cível para Extinção de Domínio”.

Esta intenção já tinha sido sublinhada quando o Primeiro-Ministro, Luís Montenegro, dedicou parte do seu discurso de tomada de posse (em abril) ao tema da corrupção: o líder do Governo anunciou, então, que a Ministra da Justiça ficava incumbida de liderar um conjunto de audições sobre esta matéria, recolhendo propostas da oposição, com vista a um acordo nesta área. O objetivo, disse, era “propor a todos os partidos com assento parlamentar a abertura de um diálogo com vista a uma fixar uma agenda ambiciosa, eficaz e consensual de combate à corrupção“, sublinhando que o Governo tinha “propostas ousadas e inovadoras nesta matéria” e que ninguém tem “o monopólio das melhores soluções“.

Com um prazo de dois meses para apresentar uma síntese das várias propostas, o Governo aprovou em 20 de junho, em Conselho de Ministros, a sua Agenda Anticorrupção, um conjunto de 32medidas que visa tornar mais eficaz a prevenção e o combate a este tipo de crimes.

No documento pode ler-se que as propostas resultaram de “um intenso diálogo com todos os partidos com assento parlamentar, entidades públicas relevantes na abordagem deste fenómeno e organizações da sociedade civil”, um processo que visou “discutir propostas e identificar medidas, procurando consensos nesta matéria crucial para a democracia”.

Entre as medidas previstas conta-se a definição de um novo paradigma de perda alargada de bens a favor do Estado, bem como a criação de condições para uma maior celeridade da Justiça, dificultando o recurso a expedientes dilatórios. O agravamento da pena acessória de proibição do exercício de funções públicas ou políticas, nos casos de condenação por corrupção, ou a criação de uma ‘lista negra’ de fornecedores do Estado são outras das medidas previstas.

Com a preocupação centrada na eficácia, a Agenda Anticorrupção assenta em quatro pilares essenciais: prevenção, punição efetiva, celeridade processual e proteção do setor público. Do documento, que pode ser consultado na íntegra, destacam-se algumas medidas mais emblemáticas.

 

AGENDA ANTICORRUPÇÃO – GOVERNO

PILAR DE INTERVENÇÃO

PROPOSTAS

PREVENÇÃO NO ESTADO
Transparência na relação do Estado com os privados

1. Regulamentação da atividade do Lóbi através da criação de um regime de transparência e de um Código de Conduta, permitindo conhecer as interações na relação do Estado com os privados.

2. Registo da “Pegada legislativa”, deixando expressas as entidades que tiverem intervenção direta na produção legislativa.

Garantir políticas públicas robustas contra a corrupção

4. Reforçar o recurso aos gabinetes jurídicos do Estado, evitando o uso excessivo de assessoria jurídica externa, assegurando assim uma menor exposição a interesses de terceiros.

5. Fortalecer os meios digitais de consulta pública em processos legislativos, incentivando uma ampla participação da sociedade civil no desenho das políticas públicas.

PUNIÇÃO EFETIVA
Mecanismo de perda de bens

9. Criar um novo paradigma de Perda Alargada de Bens a favor do Estado, fazendo reverter bens e proventos económicos da corrupção a favor do Estado.

10. Reformar a organização e alargar os instrumentos dos gabinetes de recuperação de ativos e administração de bens.

11. Agravar a pena acessória de proibição do exercício de funções públicas ou políticas.

Denúncias e proteção a denunciantes 14. Aprofundar o mecanismo de proteção para os denunciantes de corrupção e de cartéis na contratação pública.

15. Operacionalizar um canal de denúncias único de todo o Governo, através de um formulário disponibilizado no Portal do Governo.

Fiscalização Reforçada

16. Reestruturação e reforço de meios do Mecanismo Nacional Anticorrupção (MENAC).

17. Reforço de meios das Inspeções-Gerais e da sua articulação com os órgãos de polícia criminal e Ministério Público.

PROCESSOS MAIS CÉLERES
Jurisdição fiscal 18. Implementar os resultados do grupo de trabalho no âmbito da justiça administrativa e fiscal, aplicando soluções legislativas que combatam a permeabilidade à corrupção.
Processo penal menos exposto a expedientes dilatórios

19. Reforçar os poderes de condução e apreciação do juiz no processo penal, com mais capacidade para evitar expedientes manifestamente dilatórios.

20. Reduzir a amplitude da fase de instrução em processo penal: fase de instrução mais ágil e rápida focada numa apreciação sumária do processo.

21. Rever o regime dos recursos quanto aos efeitos e ao momento da subida ao tribunal superior, obstando à utilização do direito ao recurso com intenções meramente dilatórias.

Novas capacidades de obtenção de prova

22. Alargar os mecanismos de colaboração premiada no âmbito do processo penal: alargar as fases processuais e a tipologia de crimes que admitem colaboração premiada dos arguidos.

23. Mecanismos digitais de troca de informação entre autoridades judiciárias, órgãos de polícia criminal e outras entidades públicas.

24. Atualizar o regime legal dos meios de obtenção de prova em ambiente digital.

Meios digitais para os inquéritos

25. Facilitar o tratamento de prova através do uso de ferramentas tecnológicas.

26. Tramitação eletrónica do inquérito no processo penal, garantindo maior eficiência na fase de inquérito.

27. Atualizar o programa de formação para magistrados, funcionários judiciais e órgãos de polícia criminal.

28. Flexibilizar e alargar o acesso a assessoria técnica especializada à disposição dos tribunais.

29. Publicitar o acervo de decisões judiciais em matéria de corrupção.

PROTEÇÃO DO SETOR PÚBLICO
Uma sociedade civil mais exigente face à corrupção 32. Reforço de conteúdos curriculares no Ensino Básico e Secundário sobre ética, literacia financeira, os fenómenos de corrupção e a relação dos cidadãos com o Estado.

Já antes, o combate ao fenómeno da corrupção também fazia parte dos objetivos fundamentais do programa dos Governos de António Costa e era encarado como essencial para o reforço da qualidade da democracia e para a plena realização do Estado de Direito. Em 2020, o anterior governo, liderado pelo PS, tinha aprovado a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção (ENCC) que também identifica sete prioridades para reduzir o fenómeno da corrupção em Portugal:

  1. Melhorar o conhecimento, a formação e as práticas institucionais em matéria de transparência e integridade;
  2. Prevenir e detetar os riscos de corrupção no setor público; comprometer o setor privado na prevenção, deteção e repressão da corrupção;
  3. Reforçar a articulação entre instituições públicas e privadas;
  4. Garantir uma aplicação mais eficaz e uniforme dos mecanismos legais em matéria de repressão da corrupção,
  5. Melhorar o tempo de resposta do sistema judicial e assegurar a adequação e efetividade da punição;
  6. Produzir e divulgar periodicamente informação fiável sobre o fenómeno da corrupção; e
  7. Cooperar no plano internacional no combate à corrupção.

Além do conjunto de prioridades, a ENCC considerava indispensável fortalecer e valorizar os mecanismos de prevenção e deteção de crimes de corrupção e crimes conexos, com destaque, entre outras, para medidas como:

  • Reforçar o papel das escolas, transmitindo-se às nossas crianças e jovens valores que gerem repúdio perante práticas de corrupção
  • Aumentar a formação dada a todos os dirigentes e funcionários públicos, de modo que estes dirigentes e funcionários estejam mais conscientes para os perigos e consequências negativas da corrupção
  • Criar um Mecanismo Anticorrupção (MENAC), com poderes de iniciativa, controlo e sancionamento no âmbito do regime geral de prevenção da corrupção e com atribuições ao nível da recolha e tratamento de informação e da organização de programas de atividades entre entidades públicas e entidades privadas relacionados com a corrupção
  • Melhorar o conhecimento do crime de corrupção e dos crimes relacionados, afinando a produção de informação, sobretudo com base nos casos já julgados pela justiça nacional.

O documento já previa, também, alguns ajustamentos à lei de processo penal, com o objetivo de facilitar a separação de processos durante a fase de investigação e de admitir a celebração de acordos sobre a pena aplicável, durante o julgamento, com base na confissão livre e sem reservas dos factos imputados ao arguido.

O MENAC acabou por ser criado em 2021, mas só começou a funcionar efetivamente há cerca de um ano e meio porque o processo de seleção e nomeação do seu presidente foi demorado. Sendo uma entidade administrativa independente, tem por missão a promoção da transparência e da integridade na ação pública, cabendo-lhe garantir a efetividade das políticas de prevenção e infrações conexas associadas que as entidades obrigadas pelo Regime Geral de Prevenção da Corrupção têm de adotar. Mas, segundo notícias recentes, ainda não produziu qualquer parecer ou aplicou qualquer sanção apesar de ter pedidos para tal, por exemplo, da Inspeção Geral de Finanças.

Justiça e Combate à Corrupção: o que melhorou?

Apesar da perceção pública sobre o combate à corrupção ser pouco positiva, é verdade que tem havido mudanças e melhorias. É o caso, por exemplo, do segmento da prevenção, com uma grande aposta na implementação de medidas de prevenção generalizadas, quer na administração pública quer nas empresas, tais como, códigos de conduta e mecanismos de cumprimento normativo, de compliance, etc. Esta é uma prática que ainda não está generalizada e interiorizada por todas as empresas portuguesas (com exceção dos setores mais regulados em que há exigências legais a esse respeito), mas que está a fazer o seu caminho.

Nos últimos anos tem também havido um reforço de meios, sobretudo com o recrutamento para a Polícia Judiciária (PJ) de 500 novos inspetores e 150 peritos (2018-2023), que têm ajudado a resolver as deficiências em termos de investigação da corrupção e criminalidade económico-financeira.

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