No tempo da Ditadura, os Advogados eram talvez quem conseguia ter mais liberdade de expressão, devido ao caráter independente da profissão, mas mesmo assim tinham de operar com cautelas porque também poderiam ser ameaçados. Muitos, na defesa dos seus clientes e de causas justas, sofreram represálias, por representarem, na visão do regime, uma ameaça – por exemplo, ao defenderem presos políticos.
É preciso que se diga, já agora, que a Justiça também não era livre. A Justiça como a conhecemos hoje, não existia. Havia muitos processos em que os indivíduos nem eram presentes a um juiz, quanto mais terem acesso a um Advogado, a uma defesa e a um julgamento.
Neste texto, recordamos alguns aspetos de como funcionava a Justiça antes da Revolução e, em particular, a forma como os Advogados se podiam movimentar nesse quadro e as dificuldades que enfrentaram. E, de caminho, recordamos as homenagens que têm sido feitas aos Colegas ainda vivos que viveram esses tempos e que asseguraram a defesa de tantos presos políticos.
Fomos, também, ao ‘baú’ de memórias do Conselho Regional de Lisboa (então, Conselho Distrital) procurar referências a esses tempos na história do Conselho, recordando as posições que teve em defesa dos Colegas, durante a ditadura do Estado Novo (ver caixa “A Advocacia em Ditadura na História do CRLisboa”).
A (falta de) Justiça antes de 1974 e depois
Em 1932, com o decreto-lei nº 21 942 (05/12), foram criados os Tribunais Militares Especiais, em Lisboa e no Porto, para punição dos crimes políticos – no ano seguinte ficou apenas um único tribunal sediado na capital. Em 1945, após a Segunda Guerra Mundial, o decreto-lei nº 35 044 (20/10) extinguiu esse tribunal substituindo-o pelos Tribunais Plenários, sediados em Lisboa e no Porto e constituídos por um juiz desembargador e por dois vogais, os juízes mais antigos dos juízos, de nomeação governamental, com competência para os crimes contra a segurança do Estado.
Os Tribunais Plenários deram cobertura à arbitrariedade e à violência do Estado Novo, com juízes particularmente complacentes para com os agentes da PIDE, permitindo que ocupassem a sala de audiências à vontade, de modo a impossibilitar a presença de assistentes (sobretudo famílias e apoiantes), enquanto impediam que os réus denunciassem as condições preparatórias do processo sob prisão ou que afirmassem as suas convicções.
Há relatos de que, no Tribunal Plenário de Lisboa, os réus chegavam mesmo a ser espancados pelos agentes da PIDE durante os julgamentos e arrancados dali à força, quando exigiam apresentar as suas razões, tudo com a aquiescência dos juízes que constituíam o Tribunal.
Os juízes do Plenário eram também grosseiros e prepotentes em relação aos Advogados de defesa, condicionando a sua atuação, multando-os e chegando mesmo a determinar o seu julgamento sumaríssimo, como aconteceu com Manuel João da Palma Carlos, em abril de 1957, quando foi preso em pleno tribunal e condenado por responder aos juízes nos seguintes termos: “Julguem Vossas Excelências como quiserem, com ou sem prova, mas o que não podem é deixar de consignar em ata tudo quanto na audiência se passar”. Estas palavras valeram-lhe sete meses de prisão e um ano de privação dos direitos políticos.
Desafiar o poder judicial no Estado Novo não era uma tarefa simples: cabia a estes Advogados, dentro das parcas ferramentas possíveis, defender e lutar pelos direitos dos presos políticos, sob pena de muitas vezes eles próprios serem detidos e interrogados. Para além de os Advogados não terem, muitas vezes, acesso aos processos, as provas eram forjadas – ou a prova factual do crime baseava-se na crença do juiz de que o réu era um opositor -, as confissões eram extorquidas à custa de tortura e havia sempre testemunhas de acusação personificadas em agentes da PIDE que, normalmente, não eram os mesmos que capturavam ou acompanhavam o preso político. O trabalho destes Advogados ultrapassava muitas vezes o âmbito jurídico, uma vez que eram muitas vezes o elo de ligação entre as famílias e os presos que ficavam em isolamento.
A Advocacia – através da Ordem dos Advogados – teve ainda um papel perigoso, mas indispensável na divulgação, a nível internacional, do tratamento dos presos políticos em Portugal, aderindo nesse período a diversas organizações internacionais que enviaram observadores e registaram o desrespeito pelos direitos fundamentais do Homem.
A democratização provocou alterações profundas na estrutura orgânica da Justiça, acabando com as situações abusivas do passado, mas os Advogados, esses, mantiveram-se fiéis aos seus princípios e à defesa dos direitos, liberdades e garantias, pugnando pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da Justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e instituições jurídicas.
Atualmente, vivemos uma realidade em que, por exemplo, quem tem responsabilidades de governo pode, a qualquer momento, responder face à Justiça – como, aliás, temos assistido recentemente. A Justiça não vive isenta de problemas, mas existe a possibilidade de ir procurando soluções, num quadro de liberdade em que todos podem afirmar o que entendem – algo absolutamente inexistente antes da Revolução.
Reconhecimento do papel dos Advogados na Ditadura
O papel dos Advogados durante o Estado Novo tem sido recordado e homenageado ao longo do tempo: este ano, 50 Anos depois da Revolução, o Presidente da República condecorou os Advogados, ainda vivos, que entre 1945 e 1974 defenderam presos políticos nos Tribunais Plenários.
Nessa cerimónia, foram homenageados Amadeu Lopes Sabino, António Cortes Simões, Joaquim Cavaqueiro Mestre, Jorge Santos, José Biscaia Pereira, José Carlos de Vasconcelos, José Coelho Alves, José Delgado Martins, José Vera Jardim, Levy Baptista, Lopes de Almeida, Macaísta Malheiros, Monteiro Matias e Saúl Nunes.
Já em 2014, quando se comemoraram os 40 anos do 25 de Abril, o Parlamento tinha já homenageado 162 Advogados e advogadas que defenderam presos políticos, numa iniciativa dinamizada pelo Movimento Cívico “Não Apaguem a Memória”, em colaboração com a Assembleia da República e a Ordem dos Advogados.
Muitos dos homenageados (ver lista completa aqui), acabaram por passar de Advogados a réus, sendo também perseguidos pelo regime. Alguns tornaram-se figuras de relevo na política e na Advocacia como é o caso dos ex-presidentes da República Mário Soares e Jorge Sampaio, o primeiro primeiro-ministro no pós-25 de Abril, Adelino da Palma Carlos (irmão de Manuel João da Palma Carlos) e Francisco Salgado Zenha – outros continuaram anonimamente o exercício da sua profissão.
Então, a Assembleia da República reconhecia “a bravura de todos os Advogados e advogadas que arriscaram a sua vida para defender os presos políticos, primeiro em tribunais militares especiais e depois em tribunais plenários –onde apenas se julgavam crimes políticos”.
A Advocacia em Ditadura na História do CRLisboa | |
Anos 1930 |
• Uma das primeiras preocupações do Conselho, nos primeiros anos após a sua criação, foi a defesa da dignidade da Classe e do trabalho dos Advogados, sobretudo dos Colegas que acompanhavam presos na Cadeia do Limoeiro, onde eram vulgarmente impedidos de fazer o seu trabalho.
• Em pleno Estado Novo, esta preocupação estendia-se aos presos políticos que eram eles próprios Advogados, tendo o Conselho diligenciado junto da polícia política da altura – a Polícia de Defesa Social e Política (precursora da PIDE) – para que pudessem ser interrogados com dignidade. |
Anos 1940 |
• O Conselho teve de diligenciar várias vezes ao longo dos anos, junto da PIDE – Polícia Internacional e de Defesa do Estado, para que Advogados que eram presos políticos pudessem ser ouvidos por Colegas do Conselho para passagem de casos em curso. • No julgamento de presos políticos acusados de pertencerem ao PCP (em 1948), o Advogado Heliodoro Caldeira foi acusado de ter proferido durante o julgamento palavras impróprias em relação aos membros da PIDE a quem teria chamado “apaches de crachá na lapela”. O Advogado justificou as suas palavras com o facto de os seus constituintes terem sofrido maus-tratos, infringidos pelos agentes da PIDE. • A PIDE e o então chefe de gabinete do Ministro da Justiça enviaram um pedido ao Conselho para que o Advogado fosse castigado disciplinarmente. O Conselho recusou por considerar que o exercício da profissão e a sua independência justificavam a sua atuação e porque os registos das sessões de julgamento confirmavam que os ditos episódios de maus-tratos tinham acontecido. |
Anos 1950 |
• Com o agudizar da pressão da Polícia Política e dos Tribunais Plenários, o Conselho deliberou que todos os Advogados em situação de presos políticos fossem alvo de uma visita pelo seu presidente ou vogais no sentido de “lhes conferir moral”. • O Conselho também expressou a sua preocupação em relação ao livre exercício da profissão de Advogado, registada no relatório anual desse ano, nos seguintes termos: “é de salientar que, de uma maneira geral, se manifesta certa intranquilidade no que respeita à tradicional liberdade dos Advogados no exercício da sua função, coartada por medidas legislativas que, possivelmente interpretadas para além do seu espírito, tem de considerar-se em desfavor do prestigio e da dignidade daquela mesma função intimamente ligada às instituições judiciárias, que assim ficariam diminuídas”. |
Anos 1960 |
• Francisco Salgado Zenha faz parte do Conselho, sendo já então eminente Advogado e elemento envolvido na ação política contra o regime, o que lhe valeu várias prisões desde 1947. • É por sua solicitação que o Conselho solicita à Polícia Judiciária informação relativa às normas pelas quais se regia, designadamente quanto à comunicação dos Advogados com os presos. Esta entidade policial comunicou em resposta que não dispunha de qualquer regulamento sobre essa matéria. • O Estado Novo aumentava a pressão sobre os ativistas políticos e o Conselho continuou a intervir na defesa de Advogados apanhados na malha da PIDE. É o caso da presença de um membro do Conselho nas buscas ao escritório de um Advogado que foi preso em 1967 e da prisão e deportação (para São Tomé), sem julgamento prévio ou direito de defesa, de Mário Soares, em março de 1968 – tendo o Conselho juntado a sua voz à do Conselho Geral na realização de diligências para condenar o sucedido e exigir a revogação de tal medida. |
Anos 1970 |
• Em plena Primavera Marcelista, em 1972, realizou-se o 1º Congresso Nacional dos Advogados, na Fundação Calouste Gulbenkian, uma aspiração antiga do Conselho. Dadas as normas que proibiam as reuniões públicas, esta foi uma iniciativa arriscada, a que assistiram cerca de mil participantes, numa altura em que a Ordem contava com três mil inscritos. • Na sequência do 25 de Abril de 1974, o Conselho reuniu extraordinariamente para aprovar uma moção em favor da Revolução dos Cravos, que devolveu a Democracia a Portugal. Especificamente, a declaração salientava o desejo de que ficassem “asseguradas as liberdades e garantias fundamentais de todos os portugueses e em que a administração da Justiça e o exercício da Advocacia se possam processar com a indispensável independência”. |