AS MULHERES NA JUSTIÇA VISTAS PELAS VOGAIS DO CRLISBOA
O Conselho Regional de Lisboa (CRLisboa) conta atualmente com oito mulheres na sua direção, uma das quais como primeira vice-presidente. Além de dirigentes da Ordem são profissionais experimentadas na Advocacia e, como mulheres, conseguem ter uma leitura dupla sobre o papel feminino na Justiça.
Assim, quisemos saber junto das vogais do CRLisboa o que pensam de dois aspetos: (i) como profissional do setor, como caracteriza o papel das mulheres nas profissões jurídicas? e (ii) como Advogada, e tendo em conta a sua experiência e casos que tenha acompanhado, como avalia a situação atual das mulheres na sociedade portuguesa? Estas são as respostas de Cláudia de Oliveira, Cristina Eloy, Filipa Fraga Gonçalves e Helena Domingues..
Cláudia de Oliveira
“Sou do tempo em que Advogada já se conjugava no feminino, mas se exercia maioritariamente no masculino, resistente à mudança. O percurso das mulheres nas profissões jurídicas é uma crónica de resiliência e tenacidade. Desde os tempos em que as faculdades de direito e os tribunais eram bastiões exclusivos dos homens, as mulheres têm lutado contra as normas sociais e as proibições legais, reclamando o seu lugar de direito.
Não foi só a paisagem que mudou. As mulheres estão a moldar os próprios contornos da Justiça, com a sua perspetiva única e impulsionadora da inovação. O aumento do número de mulheres Juízas, Advogadas e juristas trouxe consigo uma narrativa de mudança e uma diversidade de pensamento que enriquece o discurso jurídico e a tomada de decisões, desafiando o status quo e abrindo caminhos a políticas e práticas mais inclusivas. O efeito de cascata deste impacto faz-se sentir não só nos corredores sagrados da Justiça, mas também no tecido social mais vasto que a minha profissão de Advogada, defende e protege.
[No entanto], quase meio século após a igualdade de género ser constitucionalmente reconhecida, temos ainda um logo caminho a percorrer, até que a realidade a reflita. Socialmente, as mulheres continuam a somar a assistência ao lar e à família, aos deveres profissionais, dificultando a sua ascensão a cargos de liderança. Continua a existir uma grande percentagem de mulheres mães que após a falência das relações, ficam com os filhos a cargo e suportam a maior parte dos seus encargos.
Só em 2024, morreu já uma mulher por semana, vítima de violência doméstica, crime que continua a conjugar-se numa percentagem de vítimas maioritariamente feminina. Quase cinco décadas volvidas, as mentalidades e as práticas continuam, com frequência, e persistentemente, a não refletir o que ditam as leis, fazendo dos direitos das mulheres, em Portugal, uma causa tão atual e urgente como no final dos anos 70.”
Cristina Eloy
“As profissões jurídicas lidam, diretamente, com as vulnerabilidades, anseios, direitos e obrigações das pessoas. Embora irrelevante o género, quanto às capacidades objetivas para o exercício destas profissões, as mulheres tendem a ter maior sensibilidade e atenção às diferentes realidades sociais, em especial, às decorrentes de diferenciação com base no género, que ainda existem na sociedade em geral, tendo um papel essencial para a equilibrada aplicação da Justiça.
[Por outro lado], há inúmeros casos em que a situação da mulher é mais frágil, principalmente, nos contextos sociais mais débeis. As vítimas de violência doméstica são maioritariamente mulheres, mantêm-se os relatos de assédio e violência obstétrica, e a gravidez na adolescência, com as limitações para o futuro dessas mulheres, ainda é uma realidade. Muitas mulheres são o suporte familiar. Nestes cenários, ainda maioritários, é a mulher que cuida dos filhos, pendendo sobre ela as responsabilidades de prover pelo seu sustento, ser cuidadora e encarregada de educação.
São inúmeras as situações em que a mãe, a educar os filhos sozinha, é escrutinada pela sociedade e pelas entidades que visam proteger as crianças. É a sua casa que é visitada e avaliada, é a alimentação que dá aos filhos que é julgada, são os seus horários que são questionados, é a sua situação profissional, os seus rendimentos e gastos que são perscrutados, é a mãe que vai à escola e a quem é imputado o insucesso escolar e mau comportamento dos filhos, em suma, é a sua capacidade parental que é examinada. Já o pai ausente, incumpridor das suas obrigações, apenas passa por um eventual processo judicial para pagamento de alimentos em falta. E uma vez mais é à mulher que incumbe recorrer à Justiça, faltando ao trabalho, temendo pelo desemprego e suportando custos para fazer valer os seus direitos, esforços que, por vezes, são infrutíferos.”
Filipa Fraga Gonçalves
“As mulheres que advogam em Portugal têm, de forma gradual e profissional, conseguido cimentar as suas capacidades jurídicas, não só nos Tribunais, mas também no mundo empresarial e académico, até há poucos anos, maioritariamente masculino.
No entanto, para nós, de há cem anos a esta data, tem sido um caminho muito difícil de trilhar, pois não nos podemos esquecer que até há bem pouco tempo, no Estado Novo, o papel da mulher era em casa, pois o contrário, era visto como fator desestabilizador da família, sendo a mulher considerado um Ser menor. Mas a essência da mulher haveria de mobilizar muitas para realizar este sonho da Justiça e do Direito, sendo o nosso papel cada vez mais importante neste meio onde, em algumas áreas, é necessária uma visão mais feminina e prática das situações. Para mim, é um misto de pragmatismo e espírito prático, pois ser mulher implica ser eficaz em outras áreas que nos permitem também, com utilidade, exercer esta profissão.
Organização, método e objetividade têm forçosamente de se aliar a alguma flexibilidade e sensibilidade para se conseguir ser uma profissional dedicada, competente e justa, mas sem nos esquecermos do que nos distingue que, ao contrário do que se diz, não é fazer muita coisa ao mesmo tempo, mas sim fazer muita coisa, mas uma de cada vez e, acabando uma, passar a outra, sempre com um propósito: ter o seu lugar bem definido e respeitado em tudo o que faz, principalmente, nós Advogadas, no campo da Justiça, onde cada vez há mais elementos femininos que ainda têm de provar o seu valor. Honestamente, e apesar de uma grande evolução, as Mulheres Advogadas ou de outras áreas profissionais, têm de se esforçar muito mais para vingar na nossa sociedade. É cultural, está enraizado e é um destino a percorrer com determinação.”
Helena Domingues
Ser Advogada foi um sonho de criança. Porquê? Não sei! Mas os sonhos não se explicam, apenas são sonhos! Quando acabei o meu curso de Direito na Faculdade da Universidade de Lisboa, iniciei o meu estágio e deparei-me com um mundo novo e inteiramente desconhecido para mim. Os desafios eram muitos: desde logo ser jovem, muito jovem, inexperiente, ser mulher e estar grávida.
Na época, há cerca de 37 anos, o mundo judiciário era predominantemente masculino, formal e conservador, as mulheres eram francamente minoritárias quer nas magistraturas, quer na Advocacia, por isso ser uma jovem Advogada mulher e ainda por cima grávida era no mínimo desafiante.
Naturalmente, quando iniciamos qualquer profissão somos todos inexperientes, mas às mulheres para além da análise dos seus conhecimentos outros fatores são também objeto de análise: a sua aparência: a forma como se vestem, a forma como se comportam e os olhares de desconfiança muitas vezes não advinham só do facto de se ser jovem na profissão, mas também pelo facto de ser mulher.
A nossa sociedade evoluiu muito – convém recordar que só há pouco mais de 100 anos é que passou a ser permitido às mulheres exercerem a profissão de Advogada (decreto de 19 de Julho de 1918) e que foi nesse ano que Regina Quintanilha foi a primeira mulher a vestir a toga em Portugal. Hoje as mulheres são maioritárias no mundo judiciário, mas apesar desta evolução quantitativa será qua existem na Advocacia igualdade de direitos e oportunidade entre homens e mulheres?
As mulheres continuam a enfrentar problemas relacionados com a conciliação da vida profissional e da familiar. Continuam a não existir, como não existiam no meu tempo, apoios às Advogadas que decidem constituir família e serem mães. Quando iniciei a minha vida profissional, enfrentei igualmente o desafio de ser mãe e rapidamente percebi que não existia nenhum apoio, a não ser o da minha própria família.
A Advocacia é uma profissão muito exigente, que exige muito trabalho, muito estudo, que não tem horários pré-definidos e que, por tudo isto, é extremamente difícil a conciliação entre trabalho e família. Penso que hoje já existe uma sensibilização para a problemática da gravidez e período pós-parto por parte das magistraturas. No entanto, continua-se a depender da boa vontade dos senhores/as magistrados/as para o adiamento de diligências uma vez que não existe, por exemplo, uma suspensão de prazos e por conseguinte nada que verdadeiramente defenda as Advogadas.
Volvidos mais de 30 anos, apesar das alterações económicas, políticas, sociais e tecnológicas continua a não existir uma proteção na maternidade para as mulheres Advogadas. Este foi e continua a ser um problema por resolver! É certo que muito mudou, e que a mudança em grande parte se deve às mulheres que todos os dias lutam por Justiça, mas no seio da Advocacia, e sobretudo no que concerne às mulheres Advogadas, ainda falta percorrer caminho para se poder dizer com exatidão que existem direitos e oportunidades iguais entre Advogadas e Advogados.
Relembramos o vídeo comemorativo do Dia Internacional da Mulher, realizado pelo CRLisboa