Falar de “Justiça Amiga da Criança” tem constituído uma preocupação já há alguns anos, principalmente a partir de 2010, com a aprovação das Diretrizes do Comité de Ministros do Conselho da Europa, cujo objetivo principal é construir uma justiça que respeite a criança enquanto sujeito de direitos, que a informe, que a escute e que tenha em consideração a suas opiniões.

Odete Severino Soares, Professora Convidada e Doutoranda, NOVA School of Law
Falamos de todas as crianças que se encontrem em relação direta ou indireta com os sistemas de justiça, designadamente na qualidade de vítimas, testemunhas ou acusadas, ou de destinatárias de decisões relacionadas, por exemplo, com processos das responsabilidades parentais, em caso de divórcio, maus-tratos ou abuso sexual. Por outro lado, este modelo deverá ser aplicado de forma transversal a todos os processos que envolvam crianças independentemente da sua natureza, seja esta cível, criminal ou administrativa e acompanhar a criança desde o início do processo judicial, perdurando para lá do seu termo.
Das recomendações efetuadas pelo Conselho da Europa, mas também pela Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia, é importante assegurar as gravação das audições da criança; a existência de salas de audição adaptadas à criança nos tribunais; a previsão de disposições legislativas que garantam o acesso da criança a toda a informação jurídica relevante; o seu acompanhamento durante todo o processo; a implementação de medidas não discriminatórias; e a existência de formação adequada e contínua dirigida a todos os profissionais que contactem com crianças.
O estudo de investigação “O Direito de Participação e Audição das Crianças nos Processos Judiciais”, realizado por mim, em dois Juízos de Família e Menores em relação aos processos de promoção e proteção (fase judicial) e tutelar cível, com enfoque nos processos de regulação, alteração e incumprimento do exercício das responsabilidades parentais relativo ao ano judicial 2019/2020 revelou que apesar de termos vindo a assistir a importantes alterações legislativas que reforçam o papel e a intervenção da criança na prática judiciária e de uma maior consciência e interiorização por parte dos agentes judiciários, em particular dos magistrados, a sua audição continua a não estar efetivamente garantida, considerando que a abordagem, os procedimentos, a forma como os magistrados reconhecem ou não a criança enquanto sujeito de direitos, decidem ou não ouvi-la, não se encontra ainda balizado, pois varia de juízo para juízo, de magistrado para magistrado, consoante a sua formação, sensibilidade e disponibilidade para solicitar apoio de profissionais competentes para o efeito.
Acresce que do estudo não ficou claro a forma como as crianças são acolhidas, informadas e apoiadas quando participam nos processos judiciais.
O estudo revelou ainda que há determinados aspetos que podem ser melhorados dado que não se encontram plenamente salvaguardados na legislação e deverão merecer melhor atenção do legislador, por exemplo, o reforço do direito à informação da criança sobre o significado e alcance da audição, assegurando que aquela tem conhecimento posterior do resultado e consequências da mesma.
O Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas considera o relato fornecido à criança, em relação ao modo como as suas opiniões influenciaram a decisão, como um dos requisitos básicos para a implementação do direito a ser ouvido. O «Comité» afirma que «(…) em qualquer pesquisa ou processo de consulta, as crianças devem ser informadas sobre como foram interpretadas e usadas as suas opiniões e, quando necessário, deve-lhes ser concedida a oportunidade de desafiar e influenciar a análise das conclusões.
As crianças também têm o direito a ter um relato claro acerca de como a sua participação influenciou quaisquer resultados. Sempre que possível, deve ser dada às crianças a oportunidade de participar nos processos ou atividades de seguimento. A monitorização e avaliação da participação das crianças necessita de ser realizada, quando possível, com as próprias crianças» (CRC/C/GC/12, §134(1)).
Nas Diretrizes do Conselho da Europa determina-se que «acórdãos e decisões judiciais que afetem crianças e jovens devem ser devidamente fundamentados e explicados numa linguagem que a criança entenda, particularmente aquelas decisões nas quais as perspetivas e opiniões das crianças não foram seguidas» (§44). Além disso, as Diretrizes especificam que em qualquer procedimento judicial o advogado da criança ou outro representante legal deve «…comunicar-lhe e explicar-lhe a decisão ou sentença numa linguagem adaptada ao seu nível de compreensão». Adicionalmente, o representante legal deve dar informação acerca de possíveis passos que poderá tomar, tais como mecanismos de recurso e reclamações (§75). A comunicação e explicação da decisão é encarada como uma prática respeitadora da criança. Esta informação deve ser, no entanto, complementada com uma explicação à criança sobre as possíveis medidas que podem ser tomadas a seguir, tais como o recurso.
À semelhança do que vem acontecendo noutros países, o estudo propõe que as decisões judiciais sejam «mais amigas da criança» com a preocupação de adequar a linguagem jurídica e técnica à idade e ao nível de compreensão da criança. Sabe-se que a obrigação de fornecer informação às crianças envolvidas em processos cíveis é ainda menos evidente quando comparado com os processos tutelar educativo e penal. Na maioria dos casos, as crianças são informadas pelos seus pais e/ou representantes legais da decisão judicial.
Neste sentido, um dos aspetos importantes da “Justiça Amiga das crianças” diz respeito à forma como as decisões judiciais são apresentadas e transmitidas às crianças, devendo prevalecer aqui a preocupação de adequar a linguagem legal e técnica à idade e ao nível de compreensão da criança.
É reconhecido, principalmente depois da adoção da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança em 1989, que não é suficiente conceder direitos às crianças é também necessário efetuar as adaptações necessárias aos procedimentos judiciais existentes para acomodar as suas necessidades e vulnerabilidades distintas, permitindo que as crianças participem de forma informada e consciente no processo judicial, em geral, e na tomada decisão judicial, em particular. Desta forma, assegura-se que criança compreende melhor as razões subjacentes a determinada decisão judicial tomada, as respetivas consequências e o impacto que esta terá na sua vida.
Em Portugal, nota-se alguma preocupação na adaptação da justiça à criança/jovem ao ter-se consagrado o princípio da audição e participação da criança na legislação nacional, principalmente a partir de 2015, designadamente em matéria de adoção, no âmbito dos processos tutelares cíveis e dos processos de promoção e proteção, onde se reconhece às crianças o direito a serem ouvidas, a expressar livremente a sua vontade e a que as suas opiniões sejam tidas em consideração. No entanto, a legislação nacional não faz referência à forma de apresentação das decisões judiciais e respetiva adequação à idade e nível de compreensão da criança em relação aos processos judiciais que lhe dizem respeito, o que constitui uma limitação efetiva dos seus direitos.
Em termos gerais, e analisando a forma e o estilo das decisões judiciais em Portugal, fica-se com a noção de que é uma missão difícil para uma criança perceber o que efetivamente está em causa mesmo num processo judicial que lhe diz respeito. Ora vejamos, os próprios conteúdos das decisões, em regra, não têm um estilo comum, com abundantes citações doutrinais, confundindo-se, por vezes, com a essência da pronúncia jurisdicional, com a utilização de demasiadas notas de rodapé, podendo confundir-se entre aquilo que é essencial e o que é acessório doutrinal. Ainda de um ponto de vista formal, a extensão do relatório – que faz parte da estrutura da decisão, torna difícil que se chegue, rapidamente, à compreensão da argumentação. De igual modo, o jargão jurídico utilizado, por vezes, pode ser um obstáculo na compreensão da linguagem utilizada, que devia ser compreensível para todos, incluindo para as próprias crianças. Acresce que, muitas vezes, as formalidades utilizadas podem esconder a ausência de substância do que se está verdadeiramente a decidir.
A propósito desta matéria tem vindo a surgir algumas decisões judiciais “amigas da criança” em países, como o Reino Unido e Canadá, que tentaram adotar uma abordagem centrada na criança na fase de tomada de decisão. É disso exemplo o processo designado “Re A: Letter to a Young Person”, de 2017, do Juiz inglês Sir Peter Jackson que proferiu a sua decisão final sob a forma de uma carta dirigida ao Sam, um rapaz de 14 anos, que se encontrava no centro de um conflito de guarda entre o seu pai e a sua mãe e padrasto, com quem residia. O pai de Sam pretendia mudar-se para outro país e Sam desejava ir com ele, pelo que apresentou um pedido ao High Court of Justice (Tribunal Civil com competência para tratar ações de direito da família). A carta tem aproximadamente 2.750 palavras e expõe em termos claros a legislação atual, o papel do juiz, as questões fundamentais que foram levantadas no processo, os aspetos que foram tidos em conta para chegar à decisão e a própria decisão final e começa assim: “Querido Sam… Este caso é sobre ti e do teu futuro, por isso escrevo esta carta como forma de te dar a minha decisão a ti e aos teus pais“. A carta foi lida aos pais e depois entregue ao seu advogado para que este a transmitisse e a explicasse ao Sam aquando do seu regresso de uma viagem escolar.
Não há nada de particularmente inovador nesta decisão em termos de substância – trata-se de um caso normal de direito da família relativo aos desejos e sentimentos de um rapaz de 14 anos – mas a apresentação da decisão foi aplaudida pela comunidade jurídica e pelos defensores dos direitos das crianças como um modelo de comunicação “amiga das crianças”. A Carta do Juiz Sir Peter Jackson é uma das poucas decisões ditas “amigas da criança” proferidas no Reino Unido, com impacto no sistema de justiça interno, mas também noutros países europeus, como é o caso dos Países Baixos.
É verdade que a grande maioria dos exemplos existentes neste domínio se centra no sistema jurídico anglo-saxónico de tradição Common Law e língua inglesa, o qual é diferente do português, no entanto, vem evidenciar a necessidade de se adaptar a apresentação das decisões judiciais à idade e ao nível de compreensão da criança em geral, onde o juiz assume um papel central, não sendo, por isso, uma característica exclusiva de determinados sistemas jurídicos, podendo ser assim generalizável a outros sistemas, como o português.
Neste sentido, os esforços envidados até à data de alinhar os sistemas e práticas existentes na justiça com os direitos das crianças, tornando o processo judicial mais “amigo das crianças” têm-se centrado quase exclusivamente nos procedimentos relativos ao tratamento/acompanhamento das crianças antes da decisão, nomeadamente no contexto da audição para recolha de prova/declaração e permitir que as crianças se “sintam” parte do processo, existindo para isso orientações cada vez mais claras sobre a forma como a opinião das crianças deve ser transmitida em tribunal (especialmente ao juiz). Pelo contrário, continua a existir menos orientação relativamente à forma como a decisão do juiz deve ser apresentada à criança.
Sendo verdade que o Direito tem uma linguagem técnica e nem tudo é simplificável ou passível de ser colocado em palavras percetíveis por todos/as, a par da evolução positiva registada ao nível do sistema jurídico português no que respeita ao exercício do direito de participação e audição da criança, importava também que se avaliasse a possibilidade de se caminhar para um modelo de decisão judicial mais amigo da criança, onde os próprios juízes pudessem assumir um papel proactivo, ainda que autocrítico, de modo a perspetivarem, em termos de resposta adequada, ao que lhes é exigido pelos destinatários das suas decisões, neste caso as crianças.
Referências:
- Agência dos Direitos Fundamentais da UE (FRA, 2017). Justiça adaptada às crianças: perspetivas e experiências das crianças e dos profissionais.
- Conselho da Europa (2013). Diretrizes do Comité de Ministros do Conselho da Europa sobre a Justiça adaptada às crianças. Council of Europe Publishing.
- Comité dos Direitos da Criança. Comentário Geral n.º 12 sobre O direito da criança a ser ouvida, 1 de julho de 2009, CRC/C/GC/12.
- Soares, Odete Severino, “O Direito de Participação e Audição das Crianças nos Processos Judiciais – Promoção e Proteção (fase judicial) e Tutelar Cível”, Editora Sílabo, 2024.
- England and Wales Family Court Decisions (High Court Judges), Re A: Letter to a Young Person, 26 de julho 2017. Disponível: https://www.bailii.org/ew/cases/EWFC/HCJ/2017/48.html