
Sandra Passinhas Universidade de Coimbra, Professora Associada da Faculdade de Direito e Investigadora Integrada do Instituto Jurídico; Subdiretora da FDUC e Diretora Executiva do Centro de Direito do Consumo da UC.
O regime das práticas comerciais desleais tem um papel preponderante no Direito do Consumidor. Quando foi aprovada em maio de 2005, a Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores no mercado interno, apresentou-se logo como um diploma inovador: por ser uma Diretiva de uniformização total, retirando aos Estados-Membros possibilidade de estabelecerem um regime mais favorável aos consumidores; por adotar medidas específicas para a proteção dos consumidores vulneráveis, desviando-se, ainda que limitadamente, do padrão do consumidor médio; e pelo seu âmbito de aplicação: todas as práticas comerciais das empresas face aos consumidores, abrangendo qualquer ação, omissão, conduta ou afirmação e as comunicações comerciais, incluindo a publicidade e o marketing, por parte de um profissional, em relação direta com a promoção, a venda ou o fornecimento de um produto aos consumidores.
A Diretiva foi transposta pelo Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março, que operou, entre nós, a proibição de práticas comercias desleais nas relações com os consumidores. Para além de uma lista de práticas consideradas desleais em qualquer circunstância, que se encontram elencadas nos artigos 8.º e 12.º do diploma, são ainda proibidas as práticas comerciais desleais enganosas (isto é, as que a contenham informações falsas ou que, mesmo sendo factualmente corretas, por qualquer razão, nomeadamente a sua apresentação geral, induzam ou sejam suscetíveis de induzir em erro o consumidor, bem como as que omitam o caráter comercial da prática ou informação substancial para o consumidor), as práticas comerciais agressivas (devido a assédio, coação ou influência indevida) e as contrárias à diligência profissional.
Requer-se, para todas as categorias, que sejam suscetíveis de distorcer substancialmente o comportamento económico dos consumidores, isto é, que prejudiquem sensivelmente a aptidão do consumidor para tomar uma decisão esclarecida, conduzindo-o, por conseguinte, a tomar uma decisão de transação que não teria tomado, ou teria tomado, mas de outro modo.
Este regime tem sido alvo de intervenção pelo legislador europeu, que o vai manobrando para responder aos desafios mais recentes do Direito do Consumidor. Referir-nos-emos aos desafios colocados pela sustentabilidade ambiental e pela Inteligência Artificial.
A Diretiva (UE) 2024/825 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de fevereiro de 2024, relativa, designadamente, à capacitação dos consumidores para a transição ecológica através de uma melhor proteção contra práticas desleais e através de melhor informação, veio considerar como enganosa uma prática comercial que, no seu contexto factual, tendo em conta todas as suas características e circunstâncias, conduza ou seja suscetível de conduzir o consumidor médio a tomar uma decisão de transação que este não teria tomado de outro modo, quando envolva uma alegação ambiental relacionada com o futuro desempenho ambiental do produto, sem compromissos claros, objetivos, disponíveis ao público e verificáveis, estabelecidos num plano de execução pormenorizado e realista que v.g. inclua metas mensuráveis e calendarizadas, ou que envolva fazer publicidade a benefícios para os consumidores que sejam irrelevantes e não advenham de nenhuma característica do produto ou da empresa. Por outro lado, quando um profissional presta um serviço que compara produtos e presta ao consumidor informações sobre características ambientais ou sociais ou sobre aspetos de circularidade, como a durabilidade, a reparabilidade ou a reciclabilidade, dos produtos ou fornecedores desses produtos, são consideradas substanciais, de modo a impedir que sejam consideradas enganosas, as informações sobre o método de comparação, os produtos objeto da comparação e os fornecedores desses produtos, bem como as medidas em vigor para manter essas informações atualizadas.
Mais recentemente, o Regulamento (UE) 2024/1689 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de junho de 2024, que criou regras harmonizadas em matéria de inteligência artificial, trouxe-nos uma definição operativa dos sistemas de inteligência artificial, prevendo um regime jurídico calibrado em função do risco de cada um deles: risco limitado, risco elevado e risco inaceitável. As regras sobre os sistemas de risco inaceitável já estão em vigor desde o dia 2 de fevereiro deste ano e nas proibições incluem-se práticas como “a colocação no mercado, a colocação em serviço ou a utilização de um sistema de IA que empregue técnicas subliminares que contornem a consciência de uma pessoa, ou técnicas manifestamente manipuladoras ou enganadoras, com o objetivo ou o efeito de distorcer substancialmente o comportamento de uma pessoa ou de um grupo de pessoas prejudicando de forma considerável a sua capacidade de tomar uma decisão informada e levando, assim, a que tomem uma decisão que, caso contrário, não tomariam, de uma forma que cause ou seja razoavelmente suscetível de causar danos significativos a essa ou a outra pessoa, ou a um grupo de pessoas”. Como se lê no Considerando 29 do Regulamento, as proibições destas práticas de IA complementam as disposições da Diretiva 2005/29/CE, nomeadamente as que proíbem as práticas comerciais desleais que causam danos económicos ou financeiros aos consumidores, em quaisquer circunstâncias, independentemente de serem aplicadas através de sistemas de IA ou de outra forma. Dito de outro modo, os efeitos, na esfera do consumidor, decorrentes da utilização destas práticas proibidas de IA, operam na exata medida do preceituado pelo já referido Decreto-Lei n.º 57/2008, em especial do seu artigo 14.º, que confere ao consumidor – permitindo que a utilização de práticas comerciais desleais pelo profissional se repercuta no contrato celebrado com o consumidor – o direito à redução adequada do preço ou à resolução do contrato relativamente aos produtos adquiridos por efeito de uma prática comercial desleal e o ressarcimento nos termos gerais da responsabilidade civil.
A vitalidade do regime das práticas comerciais desleais é inegável e permite-lhe que se afirme hoje, e cada vez mais, como um regime fundamental na defesa dos consumidores.