Passam, agora, dois anos sobre o momento em que a Saúde Mental entrou no léxico da Advocacia em Portugal: em 2022 o Conselho Regional de Lisboa (CRLisboa) foi, em Portugal, a entidade pioneira a falar sobre esta temática.
Tendo em conta a preocupação criada pelas muitas queixas que vinha a registar desde o início da pandemia, nesse ano, o Conselho considerou urgente avaliar a Saúde Mental dos Advogados, com a realização de um inquérito à Classe, sobretudo, para medir o impacto e a incidência do burnout na profissão. Esse estudo deu também lugar à realização de uma conferência (10/2022) em que se abordaram vários aspetos do burnout, desde o conceito às formas de intervenção, e a uma edição especial do podcast do Conselho – Pod Esclarecer – dedicada a este tema.
Mas foram especificamente os resultados preocupantes revelados pelo estudo que levaram à decisão da criação, em novembro de 2022, do GaBEP – Gabinete de Promoção do Bem-Estar Psicológico (cujo balanço de atividade pode ser consultado AQUI) e cuja principal missão é a dinamização de ações de promoção do bem-estar psicológico de todos/as os/as Advogados/as com inscrição ativa na Ordem, residentes na área de intervenção do Conselho.
Os seus principais objetivos centram-se na promoção do bem-estar psicológico, através do acompanhamento terapêutico em consulta de Psicologia clínica e da realização de ações de prevenção e promoção da saúde mental. Neste último ponto têm sido realizadas, e continuarão a ser, ações complementares, como conferências e podcasts numa lógica de informação para a prevenção e sensibilização para a saúde e bem-estar.
Profissões Jurídicas e Saúde Mental: os números da realidade portuguesa
Se os principais resultados do estudo realizado pelo CRLisboa apontavam, em 2022, para 52,5% (dos mais de 2 mil Advogados que responderam ao inquérito) em risco elevado de burnout e para outros 16,4% com sinais de burnout já instalado, a verdade é que hoje temos mais estudos e números que mostram uma realidade complicada também noutras profissões jurídicas.
No estudo, de 2023, “Condições de trabalho, desgaste profissional, saúde e bem-estar dos/as juízes/as portugueses/as”, do Observatório Permanente da Justiça do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (coordenado pelos investigadores João Paulo Dias e Paula Casaleiro e que inquiriu 684 juízes de um universo de 2043), verifica-se que quase 17% dos juízes estão em risco elevado de burnout, com consequências como stress, dificuldade em dormir e sintomas depressivos.
Para estes resultados, contribuem seriamente a média de 46 horas por semana de trabalho, com os valores a superar as 50 em algumas áreas. Em termos de impacto na saúde, foram identificados níveis de risco em 66,7% dos participantes no critério dificuldade para dormir, em 35,9% no critério stress e em 26,2% nos sintomas depressivos. O trabalho em megaprocessos é o fator que mais contribui para níveis de stress funcional muito elevados — 65,8% dos juízes consideram-no muito stressante — mas processos volumosos, cumprimento de prazos e falta de apoio para conciliar a vida profissional e pessoal também são fatores de stress relevantes.
Os dados deste estudo sobre os magistrados do Ministério Público, não são melhores: a grande maioria (65%) está em risco de burnout. As razões são várias: elevado volume processual, falta de apoio à conciliação entre trabalho e família, impacto das inspeções judiciais no desempenho profissional, a realização dos concursos para subida de hierarquia e a falta de oficiais de justiça. É que, em média, um magistrado trabalha 45,7 horas por semana, perto de metade (48,8%) afirma trabalhar entre 36 e 51 horas semanais, enquanto cerca de 30% afirma mesmo trabalhar mais de 52 horas semanais. Apenas cerca de 20% trabalham as regulamentares 35 horas semanais.
Um outro estudo, impulsionado pela Associação de Juízas Portuguesas (AJP), revelou que os juízes estão mais sujeitos a stress profissional do que advogados e procuradores e recorrem mais a apoio psicológico e psiquiátrico para lidar com o problema, mas também a ansiolíticos, antidepressivos, álcool e drogas. Aplicado a 690 profissionais forenses — 342 juízes, 282 advogados e 66 procuradores, nas três profissões maioritariamente mulheres — o estudo visou avaliar o stress ocupacional e burnout nestas profissões, identificar as fontes do problema e, também, as estratégias adotadas para lidar com ele.
E como é ‘lá fora’?
Vários estudos, nos últimos anos, vêm avaliando a temática da Saúde Mental na Advocacia, particularmente, depois dos anos da pandemia. Logo em 2021, a Bloomberg Law (EUA) produziu um inquérito que revelou que cerca de 47% dos Advogados (cerca de 700, de empresas e de sociedades de advogados) estavam em situação de burnout.
Os advogados afirmaram viver situações de esgotamento por stress em 52% do tempo de trabalho. Entre aqueles que relataram um declínio no bem-estar, 79% identificaram os desafios que enfrentaram como uma incapacidade de se desligar do trabalho, 78% relataram uma carga de trabalho mais pesada ou responsabilidades profissionais e 61% relataram dificuldade em concentrar-se nas tarefas de trabalho.
Em 2022, outro estudo, desta vez da Legatics, em colaboração com o YouGov, no Reino Unido, concluiu que 92% dos advogados experienciaram situações de stress muito elevado e mesmo burnout, por causa do seu trabalho, e mais de 25% continuam a viver assim diariamente.
O inquérito, que ouviu cerca de 100 advogados no ativo, concluiu, ainda que:
- Mais de nove em cada dez advogados vivenciaram situações de stress elevado ou de burnout declarado, em algum momento da sua carreira, com mais de 1/4 dos inquiridos a revelar que vive assim, diariamente;
- Quase 2/3 dos advogados sentem que o seu trabalho teve um impacto negativo na sua saúde física e mental – o maior impacto é na sua saúde mental;
- Menos de 25% dos advogados sentem-se apoiados pelos seus empregadores;
- As questões que contribuem para os sentimentos de insatisfação vão desde a elevada carga de trabalho ao trabalho não reconhecido.
Mais recentemente, em 2023, também no Reino Unido, outro trabalho, realizado pela agência de recrutamento Realm Recruit, revelou que cerca de dois terços dos Advogados ouvidos (cerca de 200) já tinham passado por experiências de burnout. Cerca de 21% dos inquiridos afirmaram que se sentem muitas vezes stressados no trabalho, sendo as maiores fontes do problema o número elevado de casos (57%) e a impossibilidade de equilíbrio entre trabalho e vida pessoal (42%), bem como má gestão (39%). Outros fatores incluíam salários injustos, falta de flexibilidade e deslocações demoradas e difíceis para o local de trabalho.
Este inquérito anual também registou uma mudança no foco dos escritórios de advogados, com sinais de que alguns estão, de facto, a dar prioridade ao bem-estar dos colaboradores: a disponibilidade de profissionais de apoio à Saúde Mental foi de 58% nos locais de trabalho dos entrevistados, mais de 10% a mais do que no ano anterior, e 54% ofereciam agora acesso gratuito ou subsidiado a um conselheiro, acima dos 47,5% em 2021. Apesar desta mudança, quase um terço dos entrevistados (31%) disse não sentir que o seu bem-estar fosse apoiado pela sua empresa.