Lei de Saúde Mental, um ano depois.
Então e agora?
Fernando Vieira
Psiquiatra Forense
Foi-me pedido para desenvolver em tema central, um artigo de opinião sobre a lei de saúde mental (LSM), um ano após a sua entrada em vigor. Se é certo que obrigações institucionais me colocam dever de reserva, não é menos certo que posso naturalmente exprimir as minhas ideias enquanto cidadão informado e com conhecimentos de psiquiatria e de psiquiatria forense.
Acredito sinceramente que é importante que os advogados tenham bem presente que os cidadãos que beneficiam de cuidados de saúde mental, não só são cidadãos como os outros, como face à sua especial vulnerabilidade necessitam ainda de maior atenção dos seus defensores legais para que em qualquer caso sejam respeitados os seus direitos. O estigma da doença mental é ainda grande e os doentes psiquiátricos são ainda encarados como uma espécie diferente. É como se não fossem cidadãos, fossem antes algo bem diferente: «Doentes Mentais».
Lembro-me de um receio similar – da minha filha hoje adulta, mas que tinha na altura 3-4 anos – não relativamente a doentes mentais, mas sim medo de ir ao circo, por temor de palhaços. Tinha medo de palhaços, simplesmente isso. Ao fazer 6 anos, e porque posteriormente deixou subitamente de ter medo, perguntei-lhe a razão do seu pavor. Ela respondeu-me que ao “crescer”, leia-se, amadurecer cognitiva e afetivamente, tinha compreendido tudo… É que “quando era pequena”, dizia ela do alto dos seus seis anos de idade, pensava que os palhaços não eram pessoas, eram uma espécie diferente… Para ela no circo, para além de humanos, havia espécies perigosas, como leões, ursos e…palhaços! Tal me parece ser a sensação por vezes transmitida pela industria cinematográfica ou até pelos media. Os doentes mentais não são pessoas, são doentes…e muito perigosos. Ao momento em que escrevo estas linhas discute-se na imprensa se alguém que alegadamente terá cometido um crime, por razões que ainda se desconhece, o fez por ser doente mental. Não sei se será se não será, sei sim, que se esquece de outras hipóteses, como antecedentes criminais, eventuais ligações a uso (quem sabe se comercialização) de drogas, conflito por recusa de atendimento, etc… E porque não acrescentar a hipótese que tal se deveu a sofrer de uma Úlcera? Odontalgia? Tudo situações que podem porventura tornar alguém irritável, mas que não dariam direito a noticias sensacionais de primeira página.
O que a nova lei de saúde mental veio trazer, foi catalisar o respeito pelos direitos destes cidadãos e aumentar preventivamente o seu nível de proteção. Não que se reconheçam muitos abusos – sinceramente acredito que não – mas as varandas têm cercas de proteção não porque sejam múltiplas e certas as quedas, mas sim porque se deve impedir que ninguém, mesmo ninguém, caia de uma varanda.
E este – a proteção dos direitos dos cidadãos vulneráveis por doença – é um desiderato para o qual os advogados podem dar uma ajuda, ao serem exigentes no estrito cumprimento da Lei de Saúde Mental. Refiro-me, por exemplo, a exigirem que as Avaliações Clinico-psiquiátricas (ACP) obedeçam ao previsto nos artigos 20º nº4 e ao artigo 15º, resultando do texto uma fundamentação clara e nunca em abstrato; da ACP deve sempre extrair-se um perigo concreto apoiado em factos, e não uma abstração carenciada de fundamentação; os advogados nomeados para defesa dos direitos destes doentes devem pois, certificar-se e exigir que a finalidade de um internamento involuntário nunca é a mera coação ou detenção para impedir uma vingança em consciência sobre alguém, mas sim tratar alguém que sofre e é vulnerável. O fim tem de ser necessariamente terapêutico, nos termos da alínea d) do nº 1 do artigo 15º.
E claro, é importante que os defensores nomeados visitem os seus representados, pois eles estão à semelhança dos detidos comuns, em privação de liberdade. Refiro-me ao diálogo imprescindível entre advogados e internados – após saber junto do médico assistente se a entrevista é prejudicial para a saúde ou se se reveste de outros cuidados, nomeadamente de segurança – sejam eles doentes em tratamento involuntário em enfermarias comuns, sejam eles agentes da prática de um (facto-) crime, na asserção do artigo 1º do Código Processo Penal, que se encontrem numa enfermaria de segurança e tratamento para inimputáveis.
Pessoalmente, exerço numa enfermaria de segurança e é muito raro que um advogado lá apareça para falar com um seu representado, sendo certo que anualmente tem de o «defender» de uma privação de liberdade, que podia ser tendencialmente eterna, e que só o não é, por força agora do artigo 7º nº 1 alínea j) da Nova Lei de Saúde Mental. Estamos em crer que muitos ainda desconhecem, que o tratamento dos reclusos internados em medida de segurança é um tratamento voluntário, sendo que caso não consintam tratamento devem, simultaneamente e de imediato, serem iniciados os procedimentos da lei 35/2023 de 21 de julho, conforme artigo 7º nº 2, conjugado com o artigo 7º nº1 alínea c) e ainda artigo 34º nº 1 alinea b). O que não é dependente da vontade nos inimputáveis com perigosidade, não é o tratamento, é a privação de liberdade imposta em sentença ou acórdão por força da perigosidade. Mais uma vez aqui a importância do papel do advogado na defesa dos direitos de um cidadão vulnerável que necessita de cuidados de saúde mental.
Outro aspecto que gostaria de pontuar, habitualmente pouco falado, reporta-se à revogação do artigo 148º do Código Civil pela lei 35/2023 de 21 de julho, que falando em «internamento», mais não era que uma institucionalização forçada para toda a vida. Havia infelizmente abertura na lei para que deficientes intelectuais, esquizofrénicos residuais ou quadro demenciais, pudessem ser contra sua vontade colocados em instituições ou lares de idosos. Eis um campo que a meu ver, pode igualmente ser explorado pelos advogados, na defesa dos direitos dos cidadãos doentes. Tal é agora possível graças à nova lei de saúde mental. Quase que me apetecia dizer, que agora “Verdadeiro internamento involuntário só há um. O da Lei de Saúde Mental e mais nenhum”
A nova lei de saúde mental veio ainda dar garantias quanto a medidas coercivas, importando naturalmente que tal seja vigiado para garantir a aplicação. Refiro-me ao artigo 11º. É que agora a coação “só pode(m) ser usadas na medida do estritamente necessário para prevenir ofensa grave e iminente (…) como último recurso e por um período limitado à sua estrita necessidade”. Tal é importante, pois por vezes ainda fica a ideia em outros profissionais de saúde, de que basta um mero SOS para aplicar coercivamente um fármaco sem chamar um clínico. Agora, pela LSM, “deve ser específica e expressamente prescrito por um médico ou levado imediatamente ao seu conhecimento para apreciação e aprovação”
Perguntar-se-á agora após um ano se havia mesmo necessidade de mudar a Lei. E se sim, falta saber se de facto mudou verdadeiramente alguma coisa. A primeira questão é fácil. É claro que sim. Não só a mudança de paradigma se impunha por força da Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência (CRPD) adoptada em 2007 pelas Nações Unidas e ratificada por Portugal em 2009, mas porque passados mais de 20 anos da anterior lei, houve avanços a nível científico, nos valores sociais e no reconhecimento dos direitos humanos. Era necessário repensar a organização da prestação de cuidados de saúde mental, e esta era uma oportunidade única.
Já a segunda questão é mais difícil e até controversa. Como mudar substancialmente e em apenas um ano, toda uma cultura (judicial e hospitalar, mas não só) e todo um receio secular dos doentes mentais encarados como seres de outra espécie diferente muito perigosa? É claro que a mudança será lenta…mas já começou.
Lei da Saúde Mental, Algumas Reflexões
Rosário Zincke dos Reis
Advogada e Vogal da Associação Alzheimer Portugal
Com terminologia muito cuidada e enquadrando os direitos das pessoas que carecem de cuidados de saúde mental nos Direitos Fundamentais ou Humanos, a Lei nº 35/2023 de 21.07 traz-nos alguns desafios de interpretação, muito em especial na sua articulação com outros regimes jurídicos.
Com terminologia muito cuidada e enquadrando os direitos das pessoas que carecem de cuidados de saúde mental nos Direitos Fundamentais ou Humanos, a Lei nº 35/2023 de 21.07 traz-nos alguns desafios de interpretação, muito em especial na sua articulação com outros regimes jurídicos.
Desde logo, são vários os intervenientes que podem estar presentes: o acompanhante designado na sentença que decreta medidas de acompanhamento, o procurador para cuidados de saúde, o cuidador informal e a pessoa de confiança.
Importa conhecer o papel de cada um na sua relação com a pessoa que carece de medidas de cuidados de saúde mental bem como na sua relação com os serviços que prestam cuidados desta natureza.
À semelhança do que já existe em sede de cuidados paliativos (Lei de Bases dos Cuidados Paliativos – Lei nº 52/2012 de 05.09 – e Lei sobre os Direitos das Pessoas em Situação de Doença Avançada ou em Fim de Vida – Lei nº 31/2018 18.07) ou na Lei nº 15/2014 que consolida a legislação em matéria de direitos e deveres do utente dos serviços de saúde (prevê o direito da pessoa se fazer acompanhar de alguém por si escolhido numa urgência hospitalar), surge na Lei nº 35/2023, a pessoa de confiança.
A pessoa de confiança é alguém escolhido pela pessoa que tem necessidade de cuidados de saúde mental, expressamente por esta indicada para, com a sua concordância, lhe prestar apoio no exercício dos seus direitos (Art. 2º c) da LSM).
Não é assim um representante com legitimidade para tomar decisões de saúde, mas tão só para prestar apoio, nomeadamente no exercício dos direitos de reclamação, de apresentação de sugestões e de recurso e revisão da decisão de tratamento involuntário.
Tal como acontece com a pessoa escolhida por quem se encontra em situação de doença avançada ou em fim de vida, ou com o cuidador informal como tal reconhecido ao abrigo do Estatuto do Cuidador Informal (Lei nº 100/2009), a pessoa de confiança tem direito a aceder à informação de saúde e ao processo de tratamento involuntário com a finalidade de a poder apoiar no exercício dos seus direitos (Art. 9º, nº 6 da LSM).
Importa assim que os profissionais tenham presente esta faculdade da pessoa que carece de cuidados de saúde mental, que façam registar no seu processo que foi designada pessoa de confiança e que não lhe vedem o acesso a informação de saúde ou o seu papel de auxiliar no exercício dos direitos daquela.
A par da pessoa de confiança pode existir o acompanhante designado pelo Tribunal no âmbito do processo especial de acompanhamento de maior com legitimidade para tomar decisões de saúde.
A primeira questão que se coloca é a de saber quando e em que termos tem o acompanhante legitimidade para tomar decisões de saúde no âmbito da LSM.
Se a sentença de acompanhamento decretar a representação geral e nada disser quanto ao exercício dos direitos pessoais previstos no Art. 8º da Lei nº 35/2023?
O acompanhante tem legitimidade para aceitar ou recusar uma medida coerciva ou uma intervenção psicocirúrgica?
O Art. 145º, nº 4 do Código Civil remete para o regime da tutela. Neste sentido, tendo o tutor legitimidade para aceitar ou recusar intervenções de saúde, também o acompanhante com poderes de representação geral o terá. Contudo, o exercício de direitos pessoais é em regra livre (Art. 147º, nº 1 do Código Civil). E estamos perante o exercício de direitos pessoais.
A menos que a sentença que decreta medidas de acompanhamento determine representação especial para intervenções de saúde no âmbito da saúde mental ou confira ao acompanhante os mesmos poderes que são conferidos ao procurador para cuidados de saúde, fica-se na dúvida, ficando ao critério de quem tiver de interpretar a decisão, para a qual expressamente se remete (“No exercício dos seus direitos, o maior acompanhado é apoiado ou representado nos termos definidos na decisão judicial de acompanhamento” – Art. 9º, nº 1 da LSM).
Também em matéria de Testamento Vital a LSM nos traz novidades e matéria para reflexão e a ter em conta quando se pretenda incluir nos cuidados de saúde a receber ou a não receber medidas coercivas, incluindo isolamento e meios de contenção físicos ou químicos, Eletroconvulsivoterapia ou transmissão magnética transcraniana ou medicação psicotrópica.
Sendo certo que o formulário aprovado pela Portaria nº 104/2014 de 15.05 não é de preenchimento obrigatório podendo o outorgante elaborar o seu próprio texto de Diretiva Antecipada de Vontade, a verdade é que este é uma ferramenta muito útil para nos assegurarmos que todos os pressupostos previstos na Lei nº 25/20212 de 16.07 estão previstos, assegurando-se a validade da Diretiva.
Assim sendo, seria de todo vantajoso atualizar o referido formulário.
Acresce ainda que o Art. 10º nº 2 da LSM refere a obrigatoriedade de parecer médico que ateste a capacidade de prestar consentimento consciente, livre e esclarecido, caso a DAV tenha sido assinada perante funcionário do RENTEV, o que acontece na grande maioria dos casos, ou por vontade do outorgante
Por fim, diz-nos a LSM que as Diretivas Antecipadas de Vontade em matéria de cuidados de saúde mental não são observadas quando se verifique que da sua observância resultaria perigo para bens jurídicos pessoais ou patrimoniais de terceiros nos termos da Lei da Saúde Mental (Art. 10º nº 4 da LSM).
Ainda outro aspeto que na LSM merece atenção: prevê-se um mecanismo próprio para o gestor de negócios do património da pessoa que carece de cuidados de saúde mental e não tem acompanhante designado: obrigação de comunicar ao Ministério Publico que assumiu a gestão (465º b) do C.Civil); inversão do ónus da prova da culpa – o gestor de negócios tem que fazer prova de que não agiu com culpa (Art. 466º do C. Civil); as contas e demais informações são prestadas ao Ministério Público (Art. 465 c) e d) do Código Civil).
Aqui ficam algumas reflexões sobre a atual Lei da Saúde Mental, a qual, sem dúvida constitui um passo significativo no sentido da Promoção dos Direitos das Pessoas que careçam de cuidados de Saúde Mental.